Um grupo de alunos de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) criou um curso pré-vestibular gratuito para incentivar a entrada de estudantes de baixa renda na universidade mais concorrida do Estado. Com essa proposta, nasceu o EducaMed no final de 2015, pensado e ministrado por alunos de Medicina que querem ajudar outros estudantes a alcançar a mesma oportunidade que tiveram. Há um mês o foco total das aulas está voltando para a revisão dos conteúdos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
O cursinho deu a largada em março de 2016 e está no terceiro ano. As aulas ocorrem de segunda à sexta, das 18h30min às 22h40min, com monitoria e reforço das 17h30min às 18h30min, e ocorrem no prédio anexo do curso de Enfermagem, no Bairro Santana, em Porto Alegre. O número de alunos varia ao longo do ano: em março a turma era formada por 40 e agora são 15. A evasão se dá principalmente por dificuldades de deslocamento dos alunos e falta de recursos para pagar o transporte coletivo até a sala de aula. Ainda assim, os resultados até aqui animam os acadêmicos que viraram professores voluntários: 27 foram aprovados em universidades nos dois primeiros anos do curso, das quais 19 são de ingressantes na UFRGS.
Inspirada no MedEnsina, da Universidade de São Paulo (USP), a ideia surgiu como um projeto de extensão, coordenado pelos professores Odalci José Pustai e Dario Frederico Pasche. Nasceu exclusivamente sob a órbita dos alunos da Medicina. Atualmente, porém, estudantes de outros cursos, alguns até já formados, fazem parte do grupo que dá aulas gratuitas. São cerca de 50 professores, que além da Medicina, também são alunos de Letras, História, Ciências Sociais, Engenharias e Biologia.
— A maioria do grupo nunca tinha dado aula, mas essa experiência é muito boa para nós, adapta nossa linguagem e nos traz ganhos, inclusive para a prática clínica — explica Daniel Arenas, 26 anos, formado em Medicina pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA) e residente em Psiquiatria no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Ele dá uma aula quinzenal de História e é um dos idealizadores do projeto.
— No primeiro dia de aula, deu um nervosismo, mas os próprios alunos nos ajudam a ficar à vontade. E eles nos ajudam a melhorar — considera Pedro Truccolo Chiarello, 22 anos, aluno do 7º semestre de Medicina. Uma vez por semana, ele dá aulas de Biologia no EducaMed.
Na primeira aula, os alunos adiantam para a turma que não são professores formados e que não têm intenção de competir com um profissional que cursou licenciatura. Querem distribuir o conhecimento que têm.
Aluno do 6º semestre de Medicina da UFRGS, Danilo Fernando da Silva, 27 anos, que dá uma aula semanal de Geografia, acredita que, assim como um dia foi para ele, para quem não tem pai médico em casa o professor se torna a referência. Os demais compartilham do mesmo pensamento:
— A primeira vez que tu estás ali na frente, tu te dá conta da responsabilidade que tu tens. De certa forma, tu és responsável por parte da formação daquela pessoa — reconhece Daniel.
— Eles nos escutam muito, porque nós já passamos por onde eles querem chegar — compara Gabriela Quevedo, 25 anos, formada em Relações Internacionais pela UFRGS. Ela dá aulas de Espanhol uma vez por semana.
Critério de participação
O principal critério de participação no curso é a renda: o candidato deve ter até um salário mínimo e meio de renda por pessoa na família. Também são levados em conta critérios como cota racial, estudante de escola pública e bolsista em escola participar.
Já a seleção de professores, que inicialmente ocorria por afinidade do acadêmico com a disciplina, hoje passa por uma prova didática e apresentação de uma aula para a coordenação pedagógica do curso:
— O que pesa é a pessoa mostrar uma motivação genuína de estar ali. Isso é um projeto voluntário mas a gente não está fazendo caridade, estamos dando ferramentas, oportunidades, para quem foi privado disso — argumenta Danilo.
Para Gabriela, o melhor retorno é perceber que os alunos estão compreendendo o conteúdo. No ano passado, ela apresentou uma música em Espanhol na última aula de revisão antes do Enem. Após o exame, uma aluna a procurou:
— Profe, uma das palavras que traduzimos caiu na prova e eu sabia o significado graças àquela música.
Nada é mais compensador que isso, reforça a jovem:
— É gratificante ver uma aula rendendo. É isso que paga. Quando estou dando aula, me pego às vezes lembrando de palavras que meus professores diziam.
Sem tempo ruim
E como arrumar tempo para ensinar outros estudantes em meio à rotina intensa de aulas e provas da faculdade? A gurizada da Medicina, especialmente conhecida por não ter vida fora da faculdade, desfaz o mito de que é impossível conseguir uma brecha na agenda:
— Dizem que quem faz Medicina não tem tempo para nada. Parcialmente isso é verdade, mas quando se quer mesmo, a gente consegue se dedicar ao que realmente é importante para nós. Não é impossível fazer algo legal como isso — explica Danilo.
Nascido na periferia de São José dos Campos (SP), o futuro médico sente obrigação de ajudar, já que também foi auxiliado no passado:
Dizem que quem faz Medicina não tem tempo para nada. Parcialmente isso é verdade, mas quando se quer mesmo, a gente consegue se dedicar ao que realmente é importante para nós. Não é impossível fazer algo legal como isso
DANILO FERNANDO DA SILVA
Aluno de Medicina e professor do Educamed
— Não tenho como deixar de olhar para trás, teve gente que me ajudou, não custa ajudar também quem quer viver melhor e oferecer uma condição mais digna para sua família.
Além de ser algo que lhe distrai fora do ambiente de estudo e proporciona novas leituras além dos livros de psiquiatria, o cursinho é para Daniel um dos momentos mais prazerosos da sua semana:
— Eu fico esperando o dia de dar aula. A gente faz porque realmente gosta. É algo terapêutico.
Aluno do 8º semestre de Engenharia de Controle e Automação, Pedro Freitas, 21 anos, dá aulas de matemática uma vez por semana. Ele prepara o conteúdo no final de semana e não vê tempo ruim para ajudar.
— Se precisar, acordo mais cedo ou durmo mais tarde. Faço porque gosto do conteúdo e isso me ajuda também. Quando apresento trabalhos na aula, todo mundo comenta que pareço confortável em falar em público.
A experiência, segundo ele, é um teste para o futuro: pretende ser professor de Engenharia.
O retorno dos alunos
Para a atendente de call center Yasmin Amaral, 19 anos, estudante do cursinho, o diálogo aberto com os professores é uma das grandes vantagens das aulas. A jovem que sempre estudou em escola pública, sonha em cursar Medicina e não esconde o encantamento pelos professores:
— Quando tenho aula com os que são da área da saúde, logo pergunto que assunto estão estudando agora na faculdade. Muitos deles fizeram cursinho popular como nós, isso nos deixa mais motivados, nos sentimos próximos deles.
A dona de casa Leonara Pinheiro, 32 anos, também se desafia a entrar na universidade apesar das adversidades — vai tentar Enfermagem e Medicina. É viúva, mãe de dois filhos, de seis e quatro anos, e concluiu o Ensino Médio há 14 anos:
— Como em casa não consigo estudar, porque as crianças querem atenção, estudo dentro do ônibus e tiro todas minhas dúvidas aqui com os professores. Essa é a nossa chance de entrar numa universidade.
Ajuda
Os gastos do cursinho são basicamente a impressão de apostilas — elaboradas pelos próprios professores — e de material para as aulas. Parte dos custos são bancados com recursos direcionados a projetos de extensão da UFRGS. Todos os anos, porém, os professores precisam fazer uma vaquinha online para arrecadar a verba que falta. Este ano, com o baixo número de doações, não foi possível imprimir a apostila de revisão para todos os estudantes. Para não depender mais de doações, o grupo busca um patrocínio fixo. Interessados podem entrar em contato com a coordenação pelo Facebook www.facebook.com/cursinhoEducaMed ou pelo e-mail: cursinhoeducamed@gmail.com.