Marlova Jovchelovitch Noleto deixou o Rio Grande do Sul há duas décadas para se consagrar como uma guardiã internacional da educação no país. Uruguaianense com nacionalidade romena – tendo morado na Suécia, em Israel e nos EUA –, ela foi nomeada, em julho, diretora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil. Ela chega ao mais alto cargo da entidade internacional no país após uma vida dedicada à assistência social – só no sistema ONU trabalha desde 1997. Nesta entrevista, Marlova fala sobre os desafios da educação em um mundo hiperconectado, sobre investimentos em cultura e, também, sobre a atual polarização política do país – e sua relação com a educação.
Em geral, representantes da Unesco têm nacionalidade diferente do país para onde são indicados. A senhora é brasileira e romena. Isso colaborou na hora de ser apontada para o posto?
Meus avós maternos são romenos, e os paternos, lituanos. Sou uma gaúcha por acaso. Meus avós maternos vieram para o Brasil no fim da década de 1920. Para mim, foi muito bom ter também cidadania romena porque, com isso, posso ser representante no Brasil, embora seja também brasileira. No Rio Grande do Sul, a dupla cidadania é muito comum pela existência das colônias italiana, espanhola e alemã, entre outras. No sistema ONU, que é multilateral, procuram fazer com que o representante no país seja de outra nacionalidade, até para garantir uma isenção absoluta, evitar possíveis conflitos de interesse. Minha dupla nacionalidade contribuiu para minha nomeação.
Como a senhora acredita que essas experiências multiculturais vão contribuir no mais alto cargo da Unesco no país?
Trabalho no sistema ONU há 20 anos. Comecei minha carreira no Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Uma das coisas maravilhosas de se trabalhar em um organismo de cooperação multilateral é contribuir com uma das funções da Unesco: ser um laboratório de ideias e permitir que estas viajem pelo mundo. No escritório da Unesco no Brasil, nos últimos anos, ocupei a direção da área programática. Uma das ênfases da minha gestão foi promover a intersetorialidade entre nossas áreas de mandato: educação, ciências, cultura, comunicação e informação. Estamos contribuindo de maneira inovadora para fazer avançar a agenda 20+30 (de desenvolvimento sustentável). A Unesco é a agência líder para o desenvolvimento sustentável número 4, de educação de qualidade. Temos outros objetivos, entre os quais a erradicação da pobreza e a igualdade de gênero.
Como é falar de cultura em nosso país, onde há tantas necessidades primárias na educação e violência que adentra as escolas?
Temos de ser responsáveis para valorizar as coisas boas em que o país avançou. A recomendação da Unesco é de que os países invistam de 4% a 6% do PIB em educação. O Brasil investe cerca de 6%. É um dado muito positivo. Mas temos desafios importantíssimos. A qualidade da educação é um deles. Tornar a escola mais atraente para crianças e jovens é outro. Tenho uma filha de 17 anos e digo para ela: "No meu tempo, mamãe fazia pesquisa em biblioteca, não existia a internet". Hoje, jovens fazem pesquisa na internet, mas não são suficientemente alfabetizados para discernir a informação falsa da verdadeira. É um problema. A Unesco tem um programa que se chama alfabetização midiática e informacional, em que trabalhamos para que as pessoas aprendam como usar as redes. No Brasil, entre os desafios para a educação, está a boa formação dos professores, a retenção dos professores nos locais de difícil acesso e o ambiente da escola, que deve ser seguro. A escalada da violência no entorno dos colégios afeta também o seu ambiente interno.
A senhora propõe uma alfabetização digital, assim como aprendemos a ler e escrever?
É fundamental que exista uma alfabetização midiática e informacional. As pessoas precisam ser educadas para usarem a internet e a informação disponível. Uma das coisas que me chamam atenção é que as pessoas saem do médico com um diagnóstico e vão correndo no "Dr. Google". Às vezes, ficam apavoradas com o que leem, mas nem sempre aquilo corresponde precisamente ao caso delas. E ficam convictas de que o que têm é gravíssimo. Sempre digo que é bom resistir à tentação e não fazer isso. O ideal é que você acesse o ambiente da rede quando tem condições de depurar e processar a informação. Não basta acessar o conteúdo. Você precisa saber o que vai fazer com ele. Observo que, sobretudo em relação a uma população que não é suficientemente letrada do ponto de vista da educação formal, a dificuldade é maior ainda. Precisamos ajudar as pessoas a entender. Sobretudo agora, com o Brasil em meio a essa polarização: assistimos com preocupação a esse cenário de ódio nas redes. A Unesco inclusive fez, em 2016, em sua sede em Paris, um evento mundial voltado a pacificar o ambiente das redes. Para que as pessoas não se sintam tão à vontade para expressar conteúdos de racismo, ódio e intolerância.
Hoje, jovens fazem pesquisa na internet, mas não são suficientemente alfabetizados para discernir a informação falsa da verdadeira. É um problema. É fundamental que exista uma alfabetização midiática e informacional.
MARLOVA JOVCHELOVITCH NOLETO
A senhora acredita que deveria haver controle maior das redes sociais para evitar a propagação das notícias falsas?
Não falo em termos de controle, porque uma das áreas de mandato da Unesco é a liberdade de expressão. Mas há um equilíbrio delicado entre liberdade de expressão e difusão de ódio e racismo. Trabalhamos sempre pela liberdade de expressão, acreditando que esse é um dos pilares da democracia. Não falamos em termos de controle. Falamos em educação, alfabetização midiática e educacional, trabalhando inclusive com os professores, para que eles possam, desde cedo, formar novas gerações que saibam conviver no ambiente do mundo digital.
A senhora é otimista com relação à educação formal no Brasil?
Sou muito otimista em relação à educação no Brasil. O país avançou muito nos últimos 20 anos. Nossa obrigação como organismo de educação da ONU que trabalha no Brasil é contribuir para desmistificar a ideia de que aqui tudo vai mal. Não é real. O Brasil tem avanços significativos. Um deles é a questão dos dados educacionais. O Brasil tem um instituto próprio para tratar disso, que é o Inep, vinculado ao Ministério da Educação. Nem todos os países produzem informação de qualidade. Sem isso, é muito difícil desenhar políticas e ter foco. O Brasil pode desenhar bem suas políticas e ter foco porque tem dados adequados. O país ainda tem um programa como o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica, que no último relatório de monitoramento global – que é independente –, foi destacado como um dos exemplos mundiais. Isso vale também para a cultura. A diversidade do país é maravilhosa. A Unesco publicou um relatório que se chama Nossa Diversidade Criadora, que aponta o quanto a diversidade significa em termos de riqueza para um país. Tem um potencial transformador incrível. O Brasil tem a maior diáspora negra fora da África. Isso é maravilhoso para o país.
No Brasil, o ambiente educacional parece obedecer ainda a uma lógica vitoriana, com aulas expositivas. Como tornar a educação interessante para os estudantes diante de tantos apelos que desviam a atenção?
Há muitos desafios em relação ao ambiente competitivo com as mídias sociais. E a educação evidentemente não está imune a isso. Fui professora universitária por 10 anos. Dei aula sobre dialética durante muito tempo. Começava minha aula, todo ano, com uma música do Lulu Santos. "Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará." Depois que a música tocava, eu perguntava: "Quem prestou atenção nessa letra?". Eu fazia uma decupagem dos conceitos dialéticos a partir da música. Por quê? Comecei a dar aula na universidade muito jovem, eu não tinha 30 anos, e percebi que o que me interessava como aluna eram professores que despertavam em mim a curiosidade a partir do inusitado. Acho que o professor que tem paixão por ensinar começa a descobrir quais são as verdadeiras formas de chegar ao coração do aluno. E chegar também na atenção dele. Hoje, não basta chegar ao coração; é preciso entrar na mente do aluno. Precisa fazer com que o aluno morda a isca da curiosidade por aquilo que tu estás dizendo. Se ele está recebendo WhatsApp, um aviso de algo que publicaram no Facebook, uma notificação do Instagram ou do Twitter, é muito difícil competir. Porque a velocidade da informação também se propaga rapidamente, é preciso conferir o que é, fazer parte daquilo a que se está sendo chamado. Precisamos ter uma escola mais atraente para os nossos jovens.
A Unesco tem uma preocupação com a reforma do Ensino Médio. A responsabilidade será dos Estados. E a gente olha para o quadro atual dos Estados e vê um cenário de dificuldade. De que maneira a reforma vai acontecer?
MARLOVA JOVCHELOVITCH NOLETO
Qual é a sua opinião sobre o impacto da PEC 55, que definiu o congelamento de gastos nas áreas de saúde e educação por 20 anos, e sobre a reforma do Ensino Médio?
Precisamos continuar trabalhando para que o país possa definir cada vez melhor como aplicar os 6% do PIB em educação. Ainda existem áreas que precisam de refinamento do gasto público em educação.
Quais são os grandes desafios?
O Brasil vem avançando também nos grandes desafios. Acho importantíssimo que o país esteja finalmente discutindo a reforma do Ensino Médio. Essa reforma ficou vários anos no Congresso sendo debatida. Havia um certo amadurecimento. Hoje, tenho uma preocupação. A Unesco tem uma preocupação com a implementação da reforma do Ensino Médio na prática. Ela prevê, por exemplo, mudanças importantes na educação profissional, deixando a responsabilidade para com os Estados. Eles vão ter que aumentar a rede para poder fazer uma oferta mais ampla. Vão ter de se estruturar mais, e tudo isso tem custos. E a gente olha para o quadro atual dos Estados e vê um cenário de muita dificuldade financeira. Nós nos perguntamos: de que maneira a implementação da base nacional e da reforma do Ensino Médio vai acontecer? É evidente que um cenário de uma PEC de corte de gastos nos levanta um alerta.
O que a senhora pensa sobre o papel da educação em casa? Ainda é importante?
É fundamental. A família não pode terceirizar para a escola o que é de sua responsabilidade.
Ou terceirizar para o YouTube...
Isso. Fico muito preocupada quando vou a um restaurante e vejo crianças de dois a três anos sentadas à mesa, os pais almoçando e elas na frente do tablet. A família tem papel fundamental, inclusive na relação com a escola. É fundamental que pais acompanhem o rendimento de seus filhos, que participem das reuniões no colégio, que acompanhem as tarefas de casa. A gente assiste a histórias fantásticas sobre como a participação da família é decisiva para o rendimento dos alunos.
Muitas vezes, em comunidades carentes, a escola é a única presença do Estado.
Aí é uma discussão sobre o tamanho do Estado, como o Estado se organiza ou não para estar presente em comunidades vulneráveis. É evidente que, quanto mais vulnerável e de maior risco é uma comunidade, é mais importante que o Estado esteja presente lá. Não só com escola e posto de saúde, mas também com os conselhos de assistência social. O Brasil tem uma legislação social extremamente avançada, desde a Constituição Federal, com o tripé saúde, educação e assistência social. Mas é evidente que ainda há um longo caminho a percorrer.
A senhora teve experiências nos setores público e privado e no terceiro setor. Como articular esses três setores para o desenvolvimento?
Precisamos dos três setores, de uma articulação entre Estado, família e sociedade. Cada vez mais as empresas investem e apostam na responsabilidade social corporativa. Hoje, todas as grandes empresas no mundo têm uma área ou de sustentabilidade, de responsabilidade social corporativa – a própria RBS é exemplo disso, com a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho. É um exemplo que conheço bem – tive o orgulho de ser conselheira por muitos anos. Precisamos falar de articulação com múltiplos parceiros. Não será o Estado sozinho, ou o setor privado ou a sociedade civil, que responderão sozinhos aos grandes desafios do nosso tempo. Precisamos é de parcerias e alianças estratégicas.
Como a ONU trabalha de forma bastante ampla, a impressão que passa, muitas vezes, é de que está afastada do dia a dia das populações. Qual é a estratégia para se aproximar das pessoas?
A ONU trabalha, em primeiro lugar, com os países membros das organização. No caso da Unesco, são 195 países membros. Nosso primeiro parceiro é o Estado brasileiro, mas dentro do Brasil trabalhamos com o governo federal, os governos estaduais e municipais, a sociedade civil, com o setor privado e com as universidades. Trabalhamos com múltiplos atores. Temos inúmeros projetos de terreno, em que a Unesco é parceira da sociedade civil em ações cujo destinatário último é o cidadão. Um bom exemplo é o Criança Esperança, com a TV Globo, uma iniciativa em conjunto com projetos sociais que beneficiam milhões de crianças, adolescentes e jovens em todo o Brasil, com uma capilaridade imensa. Mais de 50% dos projetos apoiados pelo Criança Esperança são em municípios de até 500 mil habitantes, um projeto de mobilização social considerado pela própria ONU exemplo para o mundo. É um dos maiores projetos de mobilização social, um dos mais antigos e com força e presença em todo o território nacional.
Na primeira década deste século, o mundo parecia caminhar para uma lógica mais multilateral. mas, hoje, vê-se polarização no debate de ideias, fronteiras mais recrudescidas e isolamentos de governos, como são os casos dos EUA e do Reino Unido. O seu otimismo com relação à educação também se reflete sobre esse planeta atual?
Sou uma otimista incorrigível. Meu trabalho é testemunho diário de soluções inovadoras para a transformação social que dá resultados. Vejo a força da presença da Unesco no Brasil e no mundo como poderoso agente que contribui para que os países possam gerar soluções inovadoras e transformadoras para o bem-estar da população. A nossa agenda 20-30 tem um norte: não deixar ninguém para trás. Eu acredito nisso. A Unesco trabalha ancorada nos documentos internacionais, convenções. Acredito muito no papel que a Unesco tem para contribuir para que o mundo seja mais igual, mais justo e que respeite os direitos humanos. Quando a gente olha para o cenário atual, o mundo vive sua maior crise humanitária, mas ao mesmo tempo o mundo tem instrumentos, as normativas, a declaração Universal dos Direitos Humanos e a agenda 20-30. Estamos firmes no propósito de seguir em frente e não deixar ninguém para trás.
Vários monumentos considerados patrimônio da humanidade pela Unesco foram destruídos na Síria. Como estão os do Brasil?
Sim, o templo de Palmira e vários outros. E a Unesco faz uma vigilância constante nessa área. Embora a responsabilidade de preservação seja dos países, a Unesco faz o monitoramento para que haja proteção aos patrimônios da humanidade. Os nossos, no Brasil, estão muito bem. Não tem nenhum em perigo no país.