Milhares de casas foram afetadas com as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio. Entre aqueles moradores atingidos e que possuem seguro residencial ou habitacional, é preciso se atentar se o contrato cobre enchente, alagamento ou inundação.
Para aqueles que tiveram suas casas afetadas e possuem seguro residencial, a primeira orientação apontada por especialistas é procurar o corretor ou a seguradora para fazer uma análise prévia do que está coberto ou não no contrato. Normalmente, enchentes e inundações são definidas como situações não cobertas, exigindo a contratação de cobertura adicional, como aponta Bruno Miragem, professor da Faculdade de Direito da UFRGS.
A seguir, saiba mais sobre o suporte do seguro residencial em caso de enchente.
Seguro residencial ou seguro habitacional?
Primeiramente, é necessário entender o tipo seguro. O seguro residencial visa a proteger o patrimônio do segurado, podendo abarcar tanto a estrutura do imóvel quanto também os bens que guarnecem a residência, como ressalta o advogado e professor da Unisinos Manoel Gustavo Neubarth Trindade.
Por sua vez, o seguro habitacional busca proteger a instituição financeira que financiou o imóvel. Trindade exemplifica que no caso de invalidez ou morte do segurado, esse contrato garante que a instituição financeira receba as demais parcelas e, assim, a totalidade dos valores financiados. Esse seguro se tornou obrigatório pela Lei n.º 9.514, de 1997, para a concessão de financiamentos imobiliários do Sistema Financeiro de Habitação.
— É comum que o seguro habitacional sirva para cobrir danos aos imóveis em casos de explosão, incêndio, alagamentos, enchentes, entre outros, com a intenção de proteger o imóvel em si, enquanto o imóvel segurado é a garantia do pagamento do financiamento — diz o advogado. — As vítimas das enchentes devem verificar se possuem cobertura do seguro habitacional, como, por exemplo, quando possuem contrato de financiamento de imóveis junto à Caixa Econômica Federal.
Ao que é preciso prestar atenção no contrato?
Miragem destaca quatro informações essenciais para que o consumidor verifique no contrato de seguro residencial:
- A cláusula de garantia ou cobertura, que detalha quais eventos o segurador se compromete a indenizar. Nesse caso, também é importante conferir o glossário que consta na apólice, que vai definir o significado das palavras utilizadas. Por exemplo, o que significa inundação, o que significa enchente etc.
- A cláusula que define os valores máximos de cobertura, pois há sempre um limite do valor da indenização. Assim, mesmo se o prejuízo do segurado for superior, o segurador vai indenizar até o limite em dinheiro definido na apólice.
- A cláusula de exclusões, na qual são expressos os eventos que não são cobertos pelo seguro. Por exemplo, se há enchente ou inundação ali.
- A cláusula de franquia, que normalmente é expressa em um valor em dinheiro, e apenas a partir dele (deste valor para mais) é o que o segurador deverá cobrir. Ou seja, se o prejuízo do segurado for inferior ao valor da franquia, o segurador não pagará a indenização.
O professor da UFRGS acrescenta que, no seguro residencial, ainda, é exigido que o segurado relacione os bens que integram a residência, como eletrodomésticos, que pretenda proteger com a cobertura.
Cleverson Veroneze, diretor do Sindicato das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Resseguros (SindsegRS), recomenda a revisão do contrato mesmo para que quem não foi afetado:
— Verifique se há as coberturas adequadas e necessárias. Se for o caso, procure o seu corretor de seguro para poder fazer algum tipo de endosso e ajuste na apólice, especialmente para eventuais necessidades que possam ocorrer.
Tem como tentar algum ressarcimento se não houver cláusula específica sobre inundações ou intempéries?
A princípio não. Miragem aponta que “apenas se for demonstrado de algum modo que a oferta do seguro feita para o segurado dava a ideia de que estes seriam eventos passíveis de cobertura”.
Por outro lado, Felipe Kirchner, professor da Escola de Direito da PUCRS e defensor público, destaca que a possibilidade de que, se não houver uma exclusão, aquilo está coberto.
— No direito empresarial, se tu é uma empresa e está contratando seguro, a leitura que faço é a seguinte: só está coberto aquilo que está dito no contrato. Se eu ler o contrato de seguro no direito do consumidor, eu vou fazer a leitura de que está coberto tudo aquilo que o contrato não exclui. A leitura tem que ser favorável ao consumidor — explica. — Se não houver uma cláusula específica dizendo que em caso de situações como essa climática, de força maior, isso está excluído, os danos ocasionados por esse exemplo têm que estar cobertos perante o consumidor.
A pessoa teve sua casa inundada, e o seguro residencial tinha uma cláusula que previa R$ 10 mil de indenização em caso de inundação. Se o seguro tem essa cláusula específica, há algo que o segurado possa contestar? Conseguiria uma cobertura se ingressasse na Justiça?
Conforme Kirchner, dificilmente. Ele destaca que a limitação do valor do seguro é uma forma de garantir a mutualidade do contrato.
— Para a indenização ir além daquela cláusula, só se conseguisse provar que o valor que ela está pagando é incompatível com a cobertura que foi oferecida para ela, se os R$ 10 mil não seriam condizentes com o contexto em que estou ou que estou pagando para a seguradora. Só que é uma análise muito casuística e muito difícil de que se consiga algum êxito — argumenta. — Essas cláusulas que limitam o valor do seguro são lícitas. Dificilmente consegue desconstituí-las judicialmente.
Kirchner acrescenta:
— A cobertura está condizente com o valor que é pago pelo segurado. Se eu faço um seguro que me cobre em caso de enchente com R$ 10 mil, eu vou pagar "x". Se eu quero que cubra totalmente meu imóvel, que custa R$ 300 mil, eu vou pagar cinco vezes "x". Tem que existir uma proporcionalidade nesse contrato.
A maioria dos seguros residenciais não cobre esses eventos climáticos? Há relatos de que quando cobrem, é só para valores parciais ou baixos, não prevendo a perda total do imóvel.
Miragem ressalta que, em geral, os seguros residenciais abrangem como cobertura a garantia para incêndio, roubo e furto de bens, danos elétricos, vendaval, desmoronamento, impacto de veículos, quedas de aeronaves, dentre outras. Porém, enchente e inundação são previstas em cláusulas de exclusão de cobertura, sendo incluídas somente a partir de contratação adicional.
— Da mesma forma, quando incluídos, os seguradores definem limites de cobertura que, muitas vezes, não contemplam todo o dano que potencialmente pode ocorrer. A questão é que, muitas vezes, isso não é adequadamente informado ao segurado, que acredita ter seu interesse protegido pelo seguro, quando, na verdade, o contrato que ele está realizando não atende esse objetivo — diz o professor da UFRGS.
Como ficam os móveis e os eletrodomésticos? Tem que ter uma cobertura específica? Podem ser cobertos em caso de inundações?
Depende da cobertura. Havendo a contratação de cobertura específica, ela pode abranger para além do imóvel em si, móveis, eletrodomésticos e outros bens que sejam relacionados pelo segurado no momento da contratação, como observa Miragem.
Trindade complementa:
— Vai depender da extensão da cobertura. Normalmente não é tão ampla, acaba tendo um limitador, inclusive de valor, até para que se possa aferir o que realmente guarnece ou não a casa.
Se o seguro residencial cobrir apenas enchente, por exemplo, e a casa for acometida por uma inundação, o segurado não terá direito à indenização. Procede?
A redação da apólice do seguro residencial adota duas técnicas, como sublinha Miragem: ou se refere junto a enchente e inundação como causa de exclusão ou na cobertura adicional, ou se utiliza outras expressões como “convulsões da natureza”, “danos por água”, dentre outros. Por vezes, usará uma só expressão como enchente, ou até “alagamento” causado por enchente, como pondera o professor da UFRGS.
Kirchner chama a atenção para a questão interpretativa do contrato, que tende a ser favorável ao consumidor:
— O que é enchente? O que é inundação? São coisas distintas. Perante o direito do consumidor, vou interpretar enchente como inundação e inundação como enchente. O consumidor, quando ele contrata, ele é um leigo. Um total vulnerável reconhecido pela lei. Em caso de cláusulas ambíguas no contrato de seguro, tem que ser interpretada de forma favorável ao segurado.
Miragem arremata:
— A diferença entre enchente e inundação não pode ser posta ao consumidor como justificativa para o não pagamento da indenização pelo segurador. Ele terá direito. Se houver recusa do segurador, a questão deverá ser examinada pelo Poder Judiciário.
E o poder público?
Para Trindade, um ponto importante a ser ponderado é a origem dos alagamentos, como ocorreu em Porto Alegre. Ele argumenta que, em grande parte da capital gaúcha, as inundações não se deram diretamente em razão da cheia do Guaíba, mas sim por conta da interrupção do funcionamento das casas de bombas responsáveis pela drenagem da água, o que acabou por provocar as inundações.
— Nesse caso, não se estaria propriamente diante da hipótese de alagamentos decorrentes de força maior ou caso fortuito, situações as quais muitas vezes há exclusão de cobertura, mas sim diante de eventos danosos de responsabilidade de terceiros, podendo assim se encaixar em outras hipóteses de cobertura — conclui.
Em relação a outras hipóteses de cobertura, Trindade lembra que muitas apólices de seguro colocam hipóteses de exclusão como "força maior", "caso fortuito", enchentes, entre outros. Sendo a causa do alagamento decorrente do desligamento das casas de bombas, como teoriza o advogado, é possível sustentar que não há incidência dessa cláusula excludente.