A confirmação de negociações pela Embraer com a americana Zanite para uma combinação de negócios visando à capitalização da subsidiária Eve, responsável pelo desenvolvimento de seu "carro voador" (veículos elétricos de pouso e decolagem vertical, ou eVTOL, na sigla em inglês), foi vista como uma bem-vinda injeção de ânimo para a fabricante brasileira após longo período de dificuldades.
O mercado reagiu positivamente à negociação, que analistas veem como um possível "ponto de virada" para a brasileira. As ações da empresa subiram 15,61% na quinta-feira, na B3, a bolsa de valores brasileira, cotadas a R$ 20.
A informação vem depois de uma fase difícil. Logo no início da pandemia de covid-19, a companhia assistiu à demolição da combinação bilionária de negócios que havia firmado com a americana Boeing, após um longo período de negociações e aprovações regulatórias em todo o mundo.
Em meio a um mercado em crise, por causa da redução dos voos no início da pandemia, a Embraer se viu sozinha e tendo de arcar com os custos de reunificar suas operações: o contrato com a Boeing se concentrava no segmento comercial, com as áreas militar e executiva ficando na companhia "velha". O fim do negócio virou uma briga na Justiça entre as duas fabricantes.
As dificuldades ficam transparentes nos resultados recentes da Embraer. Em 2020, a empresa acumulou prejuízo líquido de R$ 3,6 bilhões, alta de 174% sobre as perdas de R$ 1,3 bilhão do ano anterior. No ano passado, a empresa entregou 148 aeronaves, ante 208 de 12 meses antes. Em relação aos pedidos, a carteira somava US$ 14,4 bilhões em dezembro último, ante US$ 16,8 bilhões um ano antes.
Diante das dificuldades, a busca de parceiros para novos projetos virou uma necessidade, e não uma opção. O projeto do eVTOL, iniciado em 2017, não previa inicialmente aportes financeiros de terceiros. A intenção era que parcerias fossem criadas apenas para ajudar no desenvolvimento de tecnologias que fogem do escopo da Embraer.
Hoje, a Embraer tem um endividamento alto (US$ 4,4 bilhões) e uma geração de caixa baixa que dificulta a criação de novos empreendimentos de forma independente. O presidente da companhia, Francisco Gomes Neto, afirmou ao Estadão, em 2020, que até o projeto de uma nova aeronave turboélice que vinha sendo programado não se concretizará se não houver um parceiro.
Credibilidade
O interesse de um estrangeiro pelo "carro voador" da Embraer foi visto por analistas como uma boa notícia em um período difícil. Ele também pode ajudar a reavivar na memória do mercado a grande capacidade de engenharia que a empresa tem — com a vantagem de um viés de inovação. Além disso, com a economia se recuperando mais rapidamente do que o esperado, há a expectativa de que a demanda por novas aeronaves cresça, favorecendo também o negócio principal da companhia.
Analista da Terra Investimentos, Régis Chinchila destaca que a busca por novas oportunidades em tecnologia tem sido um movimento crescente dentro da Embraer.
— Soluções disruptivas de mobilidade aérea urbana podem trazer o mesmo tipo de benefício que a aviação já trouxe para viagens mais longas, dando aos passageiros urbanos mais opções para se deslocarem pela cidade — afirma.
— A notícia pode ajudar a companhia a recuperar valor de mercado enquanto seus mercados tradicionais ainda se encontram sob condições disfuncionais (por causa da pandemia) — comenta o analista da Ativa Investimentos Ilan Arbetman.
Em comentário a clientes, os analistas Victor Mizusaki e Pedro Fontana, do Bradesco BBI, avaliaram que a notícia é positiva para a Embraer, já que a fabricante brasileira de aeronaves tem valor de mercado de US$ 2,5 bilhões e apenas a Eve Urban Air Mobility, sozinha, poderia atingir um valor de mercado de US$ 2 bilhões, graças à operação de Spac com a Zanite.
A Embraer confirmou, na quinta-feira, a negociação com a Zanite, sem dar detalhes sobre o projeto.
Trata-se de uma operação que tem sido muito usada ultimamente no setor de tecnologia e que foi apelidada de "IPO do cheque em branco". Essa definição está ligada ao fato de que primeiro os investidores levantam o dinheiro, fazem a listagem de uma empresa sem ativos na bolsa (a Zanite, nesse caso) e depois correm atrás de candidatos para serem adquiridos (nesse exemplo a Eve, subsidiária da Embraer).
Expansão
Esse mercado, embora arriscado, pois envolve apostas milionárias (ou, neste caso, bilionária) em negócios pouco provados, está em franco crescimento nos Estados Unidos. O boom nos EUA está transparente em números. De acordo com dados do centro de inovação brasileiro Distrito, as Spacs no território americano saíram de 59 transações, em 2019, para 248, em 2020. Até abril de 2021, foram 308 operações.
O modelo de financiamento por Spacs ainda não tem regulação no Brasil, e a visão de analistas é de que isso é natural, dado o desenvolvimento limitado do mercado de capitais no país.
Embraer já recebeu encomendas
Previsto para ser uma alternativa para trajetos curtos, o eVTOL vinha ganhando tração ao longo das últimas semanas. Recentemente, a Embraer anunciou duas encomendas: uma de 50 veículos para a Helisul Aviation, que opera helicópteros na América Latina, e uma de 200 unidades para a Halo, que fornece serviços de helicópteros e mobilidade aérea urbana privada nos EUA e no Reino Unido. Tanto no caso da Helisul quanto no da Halo, as entregas devem começar a partir de 2026.
A Embraer e a Helisul ainda firmaram parceria para desenvolver produtos e serviços que permitam a operação do eVTOL, como soluções de gerenciamento de tráfego aéreo. Inicialmente, as empresas vão trabalhar com helicópteros para validar parâmetros que possam ser usados, mais tarde, pelos "carros voadores".
Além dos acordos com a Halo e a Helisul, a Embraer também está desenvolvendo seu eVTOL em uma parceria com o Uber, que pretende realizar voos comerciais a partir de 2023. Esse prazo, no entanto, é considerado apertado por participantes do mercado.
Em todo o mundo, pelo menos 140 projetos de eVTOL estão sendo desenvolvidos. O setor aposta que o novo veículo transformará a aviação ao oferecer viagens mais baratas do que as de helicópteros.
A grande mudança tecnológica será que o eVTOL não precisará de pilotos e será elétrico. Por ser movido a bateria, não vai emitir poluentes e fará menos barulho do que os helicópteros.
Sócios da Zanite têm experiência em aviação
Apesar de ser uma Spac, empresa com propósito específico de aquisição — negócio que surge com o objetivo de investir em ideias promissoras —, a Zanite não é uma novata no mercado de aviação. Um dos principais nomes por trás da empresa é Kenneth Ricci, dono da Directional Aviation Capital, que reúne negócios como a Flexjet, de jatos particulares, além da Corporate Wings, de gestão de aeronaves. A companhia tem dois mil funcionários e receitas de cerca de US$ 2 bilhões.
Ricci iniciou a carreira como cadete da força aérea americana e acumula mais de 40 anos de experiência no setor. Foi o responsável por liderar, por exemplo, a reestruturação da Mercury Air Centers, grupo aeroespacial americano com atuação nos segmentos civil e militar.
A Zanite conta ainda com Ronald Sugar como consultor sênior. O executivo presidiu por quase 10 anos a Northrop Grumman, gigante da indústria aeroespacial com mais de US$ 35 bilhões em receitas, em segmentos que vão do programa espacial à defesa, e participou também de conselhos de Uber e Apple. Além deles, integram o conselho do grupo ex-executivos com passagens por outros nomes de ponta da indústria aeroespacial, como Gulfstream e BAE System.
A gestora Resilience Capital Partners e seu fundador, Steven Rosen, representam o lado financeiro. Com a ajuda deles, a Zanite levantou US$ 232 milhões numa oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) em novembro de 2020, para ir atrás de um negócio promissor, com preferência pelo segmento aeroespacial.
As ações da empresa atualmente são negociadas a um preço acima do patamar de listagem, o que pode ser visto como sinal de confiança do mercado, num momento em que a maioria das empresas de cheque em branco viram sua ações caírem para um patamar menor do que o da estreia, em meio à desconfiança sobre o excesso de investidores e um número limitado de negócios promissores.
Aposta em aviação
Os recursos levantados por meio das empresas de cheque em branco têm ajudado a financiar apostas em segmentos com potencial de se firmar como novas fronteiras da indústria aeroespacial. Nomes como a Virgin Galactic, que pretende levar turistas ao espaço, chegaram à bolsa depois de combinar negócios com uma Spac, como pretende fazer agora a Eve, subsidiária de "carros voadores" da Embraer.
Uma das razões que explicam esse fenômeno é que a regulação das ofertas de cheque em branco é menos rígida do que a de IPO tradicional e dá mais espaço para a apresentação de dados sobre o potencial futuro de empresas com apostas em tecnologias promissoras, mas com alto risco.
O segmento de atuação da Eve já figura no rol de negócios financiados dessa maneira. Em fevereiro, a Joby Aviation chegou à bolsa ao combinar negócios com uma Spac, numa transação que avaliou a companhia resultante em US$ 6,6 bilhões. A empresa ainda não tem fábrica e está em fase de testes. A expectativa é lançar o primeiro veículo em 2024.