Por Moises Balestro
Doutor em Ciências Sociais, professor associado da Universidade de Brasília (UnB)
O pagamento da dívida pública consome quase 50% do orçamento público federal anual. Os desembolsos correspondem a juros, amortizações e rolagem. Considerando o montante de R$ 962 bilhões pagos em 2015, são nove vezes mais do que todo o orçamento do Ministério de Educação no mesmo ano. Apesar de seu enorme impacto sobre o funcionamento do Estado no provimento de bens e serviços públicos à sociedade, e mesmo em áreas relacionadas ao desenvolvimento tecnológico e industrial, o tema da dívida é um tabu.
É possivelmente o debate mais interditado na esfera pública brasileira. Em todo o espectro político-partidário e em todas as campanhas eleitorais presidenciais, há um silêncio sobre o tema. Nas poucas vezes mencionadas, a dívida pública é sempre "naturalizada" como uma lei de ferro da economia. Trata-se de um "problema técnico-econômico" a ser gerenciado "de maneira responsável".
Por mais nefastos que sejam os efeitos da dívida pública sobre a sociedade, por maior que seja o seu fardo para a economia do país, ela supostamente é legal e legítima. Argumentos morais e que contestem a legitimidade da dívida não têm sensibilizado juízes e juristas diante dos direitos de propriedade dos detentores dos títulos da dívida.
Mas e se os contratos firmados são ilegítimos? E se quem os assinou não tinha prerrogativas para tal? E se a base jurídica e constitucional para tais contratos foi resultado de manobras que ferem as regras do jogo do funcionamento das instituições?
Analisando detalhes dos processos, dos atos e dos debates que ocorreram durante e após a Assembleia Constituinte em relação à base legal para a perícia técnica do endividamento externo e interno brasileiro, o livro O Complô, de Hermes Zaneti, traz à tona as inconstitucionalidades dos contratos de endividamento do governo federal. O livro é uma espécie de fio de Ariadne que permite entender o encadeamento de fatos e atos dos agentes políticos que agiram claramente na defesa dos interesses do sistema financeiro.
É o primeiro livro que conta os bastidores daqueles que usaram expedientes e manobras fora das regras do jogo democrático para fazer valer os interesses do sistema financeiro. Como demonstra Zaneti, foram negociações em desvantagem para o Brasil em que foram aceitas condições leoninas, abusivas e ilegais. Aqueles cujo mandato consistia em defender o interesse público e os interesses nacionais agiram de forma contrária aos interesses dos seus representados no contrato.
O grande mérito de O Complô é apontar as manobras dos atores políticos que defenderam os interesses do sistema financeiro na Constituinte e nos três poderes do Estado em torno das dívidas externa e interna. Mas o exame pericial e analítico dos fatos foi completamente ofuscado pela narrativa do "calote" e da quebra de contratos.
Zaneti lembra que os negociadores cometeram abuso de poder quando transferiram para a responsabilidade da União dívidas privadas e aceitaram cláusulas contratuais de renúncia à imunidade de jurisdição e aplicação do direito brasileiro, de renúncia à alegação de soberania e garantia de execução da dívida e sobre a arbitragem, o que configurava evidente exorbitância de poderes.
O Complô mostra que a Mesa do Congresso deveria ter encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) medidas aprovadas em plenário relativas à dívida externa, mas ao que tudo indica não o fez. Tampouco o fez em relação ao governo no que se refere às medidas administrativas cabíveis.
Zaneti salienta que a inexistência de ações por parte do STF, do poder executivo e do Ministério Público constituem indícios de que a Mesa do Congresso não encaminhou as medidas decididas em plenário. Além de consistente em sua argumentação, O Complô possui sólidas evidências empíricas que permitem ao leitor entender a gênese das falhas constitucionais, legais e contratuais dos acordos que estabeleceram as condições draconianas da atual dívida pública.
Pela primeira vez, o tema da dívida pública sai da esfera técnica e contábil para ser problematizado no âmbito constitucional e político com base na Carta Magna do país. De forma audaciosa, Zaneti propõe uma estratégia jurídica para, como ele mesmo afirma, resgatar a economia e a sociedade brasileiras da tirania do sistema financeiro e de seus agentes políticos. Para isso, ele destaca a importância de resgatar o teor integral do artigo 192 da Constituição, que estabelece que o sistema financeiro nacional deve promover o desenvolvimento equilibrado do país.
Espera-se que o livro possa romper o silêncio incômodo daquele que é o principal grilhão da economia brasileira, que a tornou refém do rentismo. Para além das insidiosas consequências econômicas e sociais, a impossibilidade de debater a dívida coloca em xeque a democracia do país. Com as brutais limitações impostas pelas atuais condições da dívida, os governos quase não têm força para implementar os programas escolhidos pela população. Não só a economia, mas a democracia também está sequestrada.