O Rio Grande do Sul vive uma nova era de decadência no transporte ferroviário. Na contramão do Brasil, onde o volume de cargas que viajam sobre trilhos cresce, o Estado atravessa nos últimos cinco anos um ciclo de redução na movimentação de mercadorias. Em 2011, no auge do serviço desde que a malha foi privatizada, duas décadas atrás, 13,8 milhões de toneladas circularam por ferrovias gaúchas. No ano passado, foram apenas 7,92 milhões de toneladas, queda de 42,6%. No mesmo período, o Brasil viu o embarque e desembarque de produtos por trens crescer 11,7%.
Especialistas no tema, governo estadual e clientes sustentam que o agravamento do quadro é causado pela concessionária Rumo, do grupo paulista Cosan, que comprou a América Latina Logística (ALL). Além de manter a postura da ALL de abandonar trechos que não considerava lucrativos e deixar de investir na manutenção nessas áreas, descumprindo contrato de concessão, a Rumo deslocou locomotivas e vagões do Rio Grande do Sul para outras regiões do país e, com isso, interrompeu o transporte para diversos clientes. No Estado, restaram equipamentos defasados.
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Em 1997, quando arrematou a Malha Sul (trechos em RS, Santa Catarina, Paraná e parte de São Paulo), a ALL recebeu 3,26 mil quilômetros de ferrovias no Estado. Hoje, a Rumo opera 1,9 mil quilômetros – 41,7% da malha foi esquecida. A participação das estradas de ferro na matriz gaúcha de transportes passou de 8,8% em 2005 para 6,4% em 2014, enquanto a fatia rodoviária chegou a 87,7%. No país, o modal ferroviário é responsável por 25% das mercadorias que cortam o território.
Para o Rio Grande Sul, o abandono das ferrovias – sinônimo de eficiência e custo menor para grandes distâncias em qualquer lugar do mundo – gera consequências que vão além da perda de competitividade. Com o aumento da safra de grãos ano a ano no Estado, transportar menos por trens significa colocar mais caminhões nas estradas, acelerando a deterioração de rodovias em um momento em que Estado e União raspam o cofre para a manutenção das vias. Ao mesmo tempo, o maior tráfego de veículos pesados eleva o risco de acidentes e mortes.
Atuante no assunto, o engenheiro ferroviário Daniel Lena Souto participa, indicado pela Sociedade de Engenharia do Estado, de um grupo de trabalho criado pelo governo gaúcho – que tinha integrantes da Rumo – para tratar das necessidades do modal ferroviário, mas se mostra decepcionado com o impasse.
– Não vejo perspectiva de mudança nesse quadro, que cada vez piora mais. A empresa só pensa em diminuir as linhas férreas. Promete investimentos para Paraná, Mato Grosso e outras parte do país, mas nada para o Rio Grande do Sul – diz Souto, também membro do Conselho de Infraestrutura (Coinfra) da Federação das Indústrias do Estado (Fiergs).
Para Souto, a origem do problema está no contrato de concessão, que abriu às operadoras a brecha de abandonarem os ramais com menor fluxo de mercadorias desde que, no total da malha, aumentassem o volume transportado. Outra exigência foi a diminuição dos acidentes. Mas, abandono de trechos e falta de manutenção em pontos onde operam caracterizam descumprimento do contrato. A Agência Nacional de Transportes Terrestres, que deveria fiscalizar o serviço, tem mostrado pouca força. As multas, em regra, viram disputas judiciais e o pagamento se arrasta.
Diretor-geral da Secretaria Estadual de Transportes, Ivan Cezar Bertuol lembra que, em 2016, nas discussões sobre necessidades para o transporte ferroviário, a empresa concordou em pontos básicos, como recuperar trilhos e dormentes no trecho de Cruz Alta a Rio Grande para dar mais velocidade ao escoamento de soja. Além disso, ajudar a viabilizar um terminal de cargas em Vacaria – que seria construído por empresários locais – para baratear a chegada de aço às indústrias da região de Caxias do Sul, melhorar a estrutura de descarga no porto de Rio Grande e criar plataformas concentradoras de cargas na Fronteira Oeste, Região Metropolitana e Cruz Alta.
– Eles concordaram, mas absolutamente nada foi feito – lamenta Bertuol.
Voz da Federação da Agricultura do Estado (Farsul) no debate, o empresário Luis Carlos Nemitz lembra que a Rumo encerrou no ano passado o transporte de arroz de cerealistas e cooperativas de Uruguaiana e Alegrete até São Paulo, operação 25% mais barata do que o modal rodoviário. Estudo indicou potencial de carga de até 335 mil toneladas por ano de arroz no trecho. Apenas 20% eram atendidos. Agora, nada.
– Alegaram falta de volume e terminais mais eficientes e rápidos. Mas por que não houve mais investimentos? Por que, nos últimos 10 anos, eles não cumpriram contratos e sequer abriram novos. Roeram a corda em vagões e carregamentos – critica Nemitz.
Segundo Souto, não se sabe onde estão cerca de 1,5 mil vagões graneleiros puros que existiam no Estado na época da Rede Ferroviária Federal. Os que chegam hoje ao porto de Rio Grande são adaptados, o que eleva custo e tempo da operação de descarregamento por exigir até a necessidade de colocar trabalhadores dentro dos vagões – "um sistema bem primitivo", qualifica o especialista.
Entre quem trata com a Rumo, sobram críticas. Oficialmente, a alegação da concessionária é de que precisa de grandes volumes e contratos de longo prazo para aumentar a oferta do serviço. Clientes e Estado, porém, sustentam que oferecem dados mostrando a viabilidade do transporte. E a empresa apenas ignoraria, sem esforço para captar carga.
De 278 multas aplicadas, apenas seis foram pagas
A ausência de força da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para fazer a Rumo – antecessora ALL – cumprir o contrato de concessão aparecem nos números do próprio órgão regulador. Desde a sua criação, em 2001, a ANTT lavrou 536 autos de infração contra a operadora da Malha Sul. Mas apenas seis multas foram pagas, em um total de R$ 650 mil. Outros 272 processos com previsão de pena pecuniária para a empresa estão suspensos por decisão judicial.
Os outros autos de infração, explica a agência, podem estar em fases anteriores de tramitação, terem sido arquivados ou terem como penalidade advertências, por exemplo. Conforme a ANTT, tem sido constatado o descumprimento de regulamentos e obrigações contratuais que caracterizam "prestação inadequada do serviço objeto da concessão" em pontos como zelo pelo patrimônio vinculado à concessão, normas da ferrovia e segurança da malha.
Segundo a agência, em eventual prorrogação contratual poderiam ser repactuados novos direitos e obrigações para que a fiscalização possa ser mais efetiva.
Dúvidas e exigências para prorrogar a concessão da malha
Em meio às queixas quanto aos trechos abandonados e à falta de vagões, o presidente Michel Temer sancionou, no início do mês, lei originária da medida provisória (MP) das concessões, que abre a possibilidade para as operadoras de rodovias, ferrovias e aeroportos anteciparem a prorrogação de contratos de exploração. No caso da Malha Sul, o direito se encerraria em 2027, mas pode ser ampliado a partir de agora por mais 30 anos.
Mesmo quem reclama da Rumo avalia que, para não haver problema de continuidade, a concessão deve ser renovada, desde que com garantias do retorno da maior oferta de serviços e manutenção dos trechos. No caso das ferrovias, o texto assegura, por exemplo, o direito de passagem, que significa obrigação de a operadora ceder para outros concessionários ou operadores independentes o direito de também utilizarem a malha. Para o engenheiro ferroviário Daniel Lena Souto, entretanto, o texto também parece abrir espaço para as empresas devolverem ramais que possam ser considerados deficitários. Isso poderia colocar em risco a possibilidade de a companhia voltar a fazer carga circular por trechos que deixou de operar.
O procurador da República Osmar Veronese, do Ministério Público Federal em Santo Ângelo, que tem atuação marcada pela tentativa de reativar ferrovias do noroeste gaúcho, tem dúvidas quanto ao interesse da empresa na prorrogação da concessão.
– Se houvesse, não estariam desativando trechos gradativamente – alerta.
O presidente do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul (Simecs), Reomar Slaviero, avalia que o melhor seria a renovação da concessão com a Rumo, mas desde que haja garantia de melhoria do serviço.
– Desde que com compromisso de manutenção e ampliação da malha. Essa é uma questão que tem de ser vista como política de Estado, de país – entende Slaviero.
Expectativa com audiências públicas para conseguir fazer mais exigências
Na nova lei recentemente sancionada por Michel Temer, as exigências para a renovação antecipada nas ferrovias informam que será levado em conta se, em três dos últimos cinco anos, foram alcançadas as metas de volume transportado e de segurança "ou das metas de segurança definidas no contrato, por quatro anos". Para Souto, este "ou" na frase abre espaço para que, a despeito da queda da carga que trafega na malha, o cumprimento de objetivos de diminuição de acidentes seja suficiente como precondição para a renovação antecipada. Como a Rumo opera uma extensão cada vez menor, é natural que diminuam os acidentes.
A previsão de realização de audiências públicas é vista como chance de serem feitas maiores exigências à concessionária. No caso do Estado, seguindo as diretrizes do Plano Estadual de Logística de Transportes, a ser concluído neste ano. Outro ponto observado é a necessidade de dar condições para que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) possa ter mais força na cobrança das obrigações da operadora.
Concessionária nega desinteresse em investir no Estado
Questionada sobre pontos específicos da reportagem, como cancelamento de transporte de arroz da Fronteira Oeste, remoção de vagões para outros Estados e abandono de trechos e alegada falta de interesse em captar novas cargas (como um possível terminal em Vacaria), a Rumo optou por respostas genéricas. A empresa disse que, no Rio Grande do Sul, suas operações têm sido impactadas por sabotagens na linha férrea. Segundo a companhia, há registros de tentativas de furtos em cargas de vagões e ameaças a funcionários, o que vem acarretando "prejuízo de grandes proporções à concessionária". Sustenta ainda a existência de ações na Justiça que tentam restringir a circulação de trens, alegando incômodo à população.
"Apesar desses contratempos, a companhia segue interessada em investir no Estado", diz a nota enviada pela empresa a Zero Hora. Segundo a concessionária, a prova disso é que, na tentativa de melhorar a eficiência do escoamento da atual safra, aumentou a frota no Estado em 160 vagões. Além disso, diz estar trabalhando com representantes do Palácio Piratini na elaboração do Plano Estadual de Logística de Transportes (Pelt).
A nota da empresa prossegue ressaltando serem necessários para o modal contratos de longo prazo com os clientes. "Somente contratos com essa característica, prevendo grandes volumes e válidos por muito tempo, justificam os elevados investimentos em infraestrutura e operação. A viabilidade do modal ferroviário está atrelada ainda à capacidade nos terminais de transbordo e nas estruturas de carregamento", descreve.
Em relação à renovação da concessão da Malha Sul, a operadora sustenta que o assunto será discutido com a ANTT. "Desde já, a Rumo manifesta o interesse em atender as premissas estabelecidas", diz a empresa, que não é clara quanto ao possível interesse em antecipar a prorrogação da concessão, lembrando apenas que o atual contrato vai até 2027.