Passados três dias da grande operação da Polícia Federal sobre irregularidades na venda de carnes, muitas dúvidas ainda pairam sobre o que de fato foi constatado. Nas 305 páginas divulgadas em um relatório da Polícia Federal e em dois despachos, que somam mais de 400 páginas da Justiça, há descrição de indícios de corrupção entre empresas e servidores do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e de irregularidades cometidas pelos frigoríficos na produção de alimentos.
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Apesar de a Polícia Federal ter juntado farto material decorrente de escutas telefônicas, além de depoimentos, o fato de a operação ter feito apenas dois testes laboratoriais nas empresas investigadas não permite o esclarecimento da extensão das irregularidades supostamente cometidas pelo grupo, já que detalhes importantes como a concentração de substâncias utilizadas pelos frigoríficos não puderam ser aferidos cientificamente.
Fato é que 21 unidades, a maioria localizada no Paraná, mas também em Santa Catarina e Goiás, são alvo de uma força-tarefa do Mapa, e três delas foram interditadas. Mas nem todas essa duas dezenas de empresas são suspeitas de vender alimentos impróprios para o consumo.
A pedido de Zero Hora, especialistas em veterinária e segurança alimentar analisaram ponto a ponto os indícios de irregularidades que constam na investigação da Polícia Federal. No quadro abaixo, veja também a posição do governo e das empresas citadas em relação às denúncias.
- O que diz a investigação
Em uma das ligações telefônicas citadas no relatório da PF, funcionários da BRF falam sobre o uso de papelão na área onde produzem CMS (carne mecanicamente separada, comumente usada na produção de salsichas). No áudio, é possível ouvir, segundo a PF:
Funcionário: "O problema é colocar papelão lá dentro do CMS também né. Tem mais essa ainda. Eu vou ver se eu consigo colocar em papelão. Agora se eu não conseguir em papelão, daí infelizmente eu vou ter que condenar."
Luiz Fossati (gerente de produção da BRF): "Aí tu pesa tudo que nós vamos dar perda. Não vamos pagar rendimentos disso."
- O que dizem os especialistas
"Antigamente, existia um boato de que era utilizado para aumentar o volume da salsicha, então era incorporado papelão na massa. Na carne, não é usual. E não acredito que isso ocorra de verdade, nunca foi comprovado", disse o professor de Microbiologia de Alimentos da UFRGS Eduardo César Tondo. "O papelão provavelmente foi usado como embalagem secundária, sendo a primária o plástico. Não tem nenhum jeito de colocar papelão no alimento", completou o médico veterinário e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Roberto de Oliveira Roça.
- Contrapontos
O que diz o governo: "Essa questão do papelão, está claro no áudio que estão se falando de embalagens e não falando de misturar papelão na carne. Senão é uma idiotice, uma insanidade, para dizer a verdade. As empresas brasileiras investiram alguns milhões, milhões e milhões de dólares dos seus mercados, há mais de 10 anos, para consolidar mercado, e aí você pega uma empresa que é exportadora e vai dizer que misturou papelão na carne? Pelo amor de Deus. Não dá para aceitar esse tipo de situação", disse o ministro da Agricultura, Blairo Maggi.
O que dizem as empresas: a BRF nega, em nota, que tenha colocado papelão nos seus produtos. "Houve um grande mal entendido na interpretação do áudio capturado pela Polícia Federal. O funcionário estava se referindo às embalagens do produto e não ao seu conteúdo. Quando ele diz 'dentro do CMS', está se referindo à área onde o CMS é armazenado. Isso fica ainda mais claro quando ele diz que vai ver se consegue "colocar em papelão", ou seja, embalar o produto em papelão, pois esse produto é normalmente embalado em plástico. Na frase seguinte, ele deixa claro que, caso não obtenha a aprovação para a mudança de embalagem, terá de condenar o produto, ou seja, descartá-lo".
- O que diz a investigação
No despacho, o juiz diz que foram adicionados ácido ascórbico (vitamina C) e ácido sórbico (um tipo de conservante) em carnes vencidas para que parecessem saudáveis. O juiz diz que o ascórbico é cancerígeno, enquanto, no relatório enviado à Justiça, a PF cita que o ácido sórbico pode causar câncer. A única empresa citada como usuária das duas substâncias é a Peccin, do Paraná. Gravações telefônicas teriam confirmado a adição dos ácidos para maquiar as carnes estragadas, mas não especifica em quais tipos. A única escuta divulgada mostra um dos sócios da Peccin associando o ácido sórbico ao frango:
Peccin Filho: "Será que a linguiça de frango, eu vou fazer uma massada cara, vou fazer, vou tirar a pele, vou deixar só com recorte, vou diminuir a água, e diminuo a água, diminuo a cura, e ali se ela tiver de... dá para pôr ácido sórbico nela?".
Em entrevista coletiva, o delegado federal Maurício Moscardi Grillo disse que eram usados "ácidos, outros ingredientes químicos, em quantidades muito superiores à permitida por lei pra poder maquiar o aspecto físico do alimento estragado ou com mau cheiro". Como não foram feitos exames para saber se as carnes apreendidas pela PF realmente continham os ácidos, não se tem comprovação da presença dessas substâncias, nem as respectivas quantidades.
- O que dizem os especialistas
Segundo a Anvisa, ambas as substâncias constam na lista de aditivos alimentares aprovados pelo órgão e não são cancerígenas. Eduardo Tondo, professor de microbiologia de alimentos da UFRGS, afirma que o ácido ascórbico é usado para manter a cor rosada da carne em produtos curados, processados, como salame e presunto, e o sórbico é um topo comum de conservante. "Não é problema usar esses ingredientes, o problema é não respeitar os níveis permitidos. Dependendo da dose, o ácido ascórbico pode ser cancerígeno. Carne processada recebe aditivos para conservar e manter a segurança, e não há problema se a dosagem for respeitada. Mas para carne in natura, não pode ter nenhum aditivo. O uso em carne in natura é fraude", afirmou Tondo.
O médico veterinário e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Roberto de Oliveira Roça aponta inclusive o contrário: "A vitamina C tem a capacidade de inibir a formação de nitrosamina, que é uma substância carcinogênica. Ou seja, ingerir ácido ascórbico faz bem à saúde. É utilizado em embutidos na realidade pra segurar a cor do alimento. Faz mal se consumido somente em quantidades muito grandes, difícil de ter em carne".
- Contrapontos
O que diz o governo: o ministro Blairo Maggi afirmou que o ácido ascórbico, divulgado como cancerígeno, "é vitamina C e pode ser utilizado em processos".
O que dizem as empresas: ZH não conseguiu contato com a Peccin. A Folha de S. Paulo disse apenas que a empresa nega as irregularidades.
- O que diz a investigação
O juiz diz que os sócios da Peccin, "mesmo cientes da proibição de utilização de carne de cabeça na linguiça", usavam esse tipo de carne na composição de embutidos. Uma escuta mostra a conversa entre o casal de sócios da empresa:
Idair: "Mas é proibido usar carne de cabeça na linguiça..."
Nair: "Tá, seria só 2 mil quilos para fechar a carga. Depois da outra vez dá para pegar um pouco de toucinho, mas por enquanto ainda tem toucinho (ininteligível)."
- O que dizem os especialistas
A carne de porco não é permitida, segundo Roberto de Oliveira Roça, em linguiças frescais ou em qualquer produto que não passa por cozimentos (cru). "A cabeça de porco tem mais chance de ser contaminada por bactérias patogênicas, até por estar mais perto da boca do animal. Então, se ela foi usada, tem risco à saúde do consumidor", aponta o médico veterinário. Segundo ele, os tipo cozidos são considerados "carne industrial", como por exemplo a mortadela, e podem conter cabeça de porco e outros tipos de carne "inferior".
- Contrapontos
O que diz o governo: o ministro Blairo Maggi afirmou que a cabeça de porco pode ser usada em embutidos e que isso consta nas normas do ministério, seguindo os limites estabelecidos no mundo todo.
O que dizem as empresas: ZH não conseguiu contato com a Peccin. A Folha de S. Paulo disse apenas que a empresa nega as irregularidades.
- O que diz a investigação
Uma conversa interceptada indica que uma carga de carne de peru da BRF teria, por estar contaminada por salmonela, retornado da Itália. Além disso, funcionários da empresa são suspeitos de oferecer vantagens a servidores para afrouxar a fiscalização e de, por meio de suborno, evitar a suspensão de fábrica em Mineiros (Goiás), onde havia incidência da mesma bactéria. O gerente de relações institucionais da BRF, Roney Nogueira dos Santos, que aparece nas escutas, foi preso na Operação Carne Fraca.
- O que dizem os especialistas
"A salmonela é uma bactéria perigosa, que pode causar grave infecção intestinal, com sintomas como vômitos, diarreia e febre, e que pode levar à morte, principalmente se o produto for mal armazenado (temperaturas acima do recomendado), porque aí as bactérias se multiplicam e o risco é maior", afirma o doutor em microbiologia de alimentos Eduardo Tondo. O médico veterinário Roberto de Oliveira Roça salienta que há chance maior de contaminação por salmonela em aves e que, por isso, o produto deve ser sempre consumido bem passado, porque a alta temperatura mata a bactéria.
- Contrapontos
O que diz o governo:em nota, o ministério afirma que a "salmonela é uma bactéria comum no trato gastrintestinal dos animais" e que, no caso das aves, "a salmonela é um problema mundial, para o qual não existem medidas efetivas de controle que possam eliminá-la da carne crua". Por isso, o ministério estabelece padrões de controles específicos da bactéria desde 2003 e, "quando detectados lotes com salmonelas de relevância em saúde pública, a legislação prevê que os produtos sejam destinados ao processamento térmico de cozimento que assegure a destruição do patógeno".
O que dizem as empresas: em nota, a BRF disse que, em relação ao caso da Itália, "não incorreu em nenhuma irregularidade", pois "o tipo de Salmonella encontrado em alguns lotes desses quatro contêineres é o salmonella Saint Paul, que é tolerado pela legislação europeia para carnes in natura e, portanto, não justificaria a proibição de entrada na Itália". "Diante do exposto, a BRF reitera que todas as medidas tomadas pela empresa e seus técnicos estão plenamente de acordo com os mais elevados níveis de governança e compliance e de forma nenhuma ferem qualquer preceito ético ou legal do Brasil e dos países para os quais a BRF exporta seus produtos", completou no comunicado.
- O que diz a investigação
Segundo a PF, fiscais teriam descoberto que frangos da empresa BRF teriam notado a "absorção de água em frango superior ao índice permitido e reembalagem de produtos inadequados para a venda". Uma escuta ainda revela que as câmaras onde os produtos eram armazenados continham excesso de água.
- O que dizem os especialistas
"Se injeta água na carne do frango ou se deixa congelar o produto em água para aumentar o seu peso. É uma fraude econômica. Não há risco para a saúde do consumidor, mas ele está pagando mais por menos", disse Eduardo Tondo.
- Contrapontos
O que diz o governo: até o momento, não se manifestou sobre o assunto.
O que dizem as empresas: a BRF não falou sobre excesso de água em seus produtos.
- O que diz a investigação
O laudo da PF sobre produtos da empresa Peccin vendidos em Curitiba apontou que salsichas e linguiças estavam "em desacordo com a legislação brasileira vigente, extrapolando os valores máximos para analito amido e nitrito/nitrato, e com aditivos não previstos pela legislação e não declarados no rótulo das amostras".
- O que dizem os especialistas
"O nitrato e o nitrito são conservadores químicos usados para combater a bactéria que pode causar botulismo. O Mapa regula as quantidades permitidas e, se passar do limite torna-se potencial substância cancerígena", afirma Roberto de Oliveira Roça. Segundo ele, não existe outro produto semelhante no mercado no mundo e ele é responsável por manter a cor, aroma e sabor de produtos como mortadela e salsicha. "Já o amido é a Maizena, usada normalmente para aumentar o volume. É que é permitido colocar, mas se passar do limite deve ser informado no rótulo, se não vai virar salsicha de amido", acrescenta Roça.
- Contrapontos
O que diz o governo:até o momento, não se manifestou sobre o assunto.
O que dizem as empresas: ZH não conseguiu contato com a Peccin. A Folha de S. Paulo disse apenas que a empresa nega as irregularidades.
- O que diz a investigação
O Frigorífico Souza Ramos é acusado de fornecer produtos para merenda escolar em desacordo com os termos contratados – havia divergência entre a formulação dos produtos e os seus rótulos. No rótulo da salsicha de peru, por exemplo, não constava a matéria prima mais usada no produto: carne mecanicamente separada de peru. No produto, que supostamente era de peru, constava também carne de frango, o que tampouco estava no rótulo.
- O que dizem os especialistas
"Todos os produtos têm de ter na composição pelo menos X% do que caracteriza o produto, sendo esse X determinado por lei conforme cada produto. Isso de usar CMS (carne mecanicamente separada de frango) é fraude grave, porque é uma carne produzida de restos, muito mais barata e com muita gordura. Pode usar, mas tem um limite", afirma Roberto de Oliveira Roça.
- Contrapontos
O que diz o governo: até o momento, não se manifestou sobre o assunto.
O que dizem as empresas: ZH não conseguiu contato com o frigorífico Souza Ramos.
- O que diz a investigação
O Frigorífico Larissa, do Paraná, foi acusado de diversas infrações, entre elas a de faturar um produto congelado como se fosse in natura. Diálogos gravados pela PF apontam que a empresa emitia notas fiscais falsas, a fim de pagar menos impostos.
- O que dizem os especialistas
"Não sei dizer como fazem exatamente, mas os fraudadores usam estratégias tentando burlar as regras tributárias do país e de cada Estado. Lesa todo mundo, porque lesa a Receita", afirma Roberto de Oliveira Roça.
- Contrapontos
O que diz o governo: até o momento, não se manifestou sobre o assunto.
O que dizem as empresas: ZH não conseguiu contato com o frigorífico Larissa.
- O que diz a investigação
Uma das práticas constatadas pela PF é a concessão de certificados que exigiam fiscalização, mas que eram liberados sem vistoria in loco. O monitoramento telefônico indicou, segundo o juiz, que em troca desses "favores", técnicos obtinham benefícios pessoais de todo tipo, desde "somas maiores e menores de dinheiro" até "caixas de carnes, frango, pizzas, ração para animais, embutidos, favores diversos (de obtenção gratuita de botas e roupas de trabalho a apoio para familiar fazer teste em escola de futebol), viagens, etc.", afirma o juiz.
Ele cita que o chefe do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal em Goiás (Sipoa-GO), o médico veterinário Dinis Lourenço da Silva, entre diversas "práticas criminosas em troca dos mais diversos 'favores'", teria viabilizado a manutenção do funcionamento da unidade da BRF em Mineiros (GO), cuja indicação era de suspensão de atividades, a pedido de Roney Nogueira dos Santos, que também teria "apoiado" uma campanha eleitoral e dado produtos a Silva. Além disso, a investigação aponta que o funcionário da Seara (que pertence à JBS) Flavio Cassou dava dinheiro e alimentos a servidores do ministério em troca da emissão de certificados para liberação de cargas para exportação sem qualquer procedimento prévio de fiscalização, em troca de produtos. Além disso, o executivo Roberto Mulbert, também da JBS, aparece perguntando a uma servidora sobre a possibilidade de prorrogar a data de validade de embalagens.
- O que dizem os especialistas
"A vistoria é algo muito importante e não pode ser burlada de forma nenhuma, porque ela que colocou o país no topo de exportação mundial de carnes. No entanto, conheço o Mapa e muitos fiscais, e acredito que é uma parcela muito pequena que comete fraude. Não podemos generalizar", disse Eduardo Tondo.
- Contrapontos
O que diz o governo: o ministro Blairo Maggi salientou que, de 11 mil funcionários, apenas 33 estão sendo investigados e que, das 4.837 unidades sujeitas à inspeção federal, apenas 21 supostamente envolvidas em eventuais irregularidades.
O que dizem as empresas: A BRF diz que a fábrica de Mineiros possui três certificações internacionais que estão entre as mais importantes do mundo e que a última auditoria pela qual o local passou foi realizada pelo Mapa em fevereiro deste ano, "tendo sido considerada apta a manter suas operações em todos os critérios". Disse ainda que, "apesar de o juiz da operação ter considerado desnecessário o fechamento da unidade, ela foi interditada, de forma preventiva e temporária, pelo Ministério da Agricultura". A JBS disse que "não há nenhuma medida judicial contra os seus executivos" e que o médico veterinário Flavio Cassou, embora contratado pela empresa, estava cedido ao Mapa. A empresa ainda diz que a "JBS e suas subsidiárias atuam em absoluto cumprimento de todas as normas regulatórias em relação à produção e a comercialização de alimentos no país e no exterior e apoia as ações que visam punir o descumprimento de tais normas".