Apresentado como garantia no processo de recuperação judicial da Iesa Óleo e Gás, o terreno em que a empresa operou em Charqueadas registrou alta valorização em curto espaço de tempo. O caso interessa ao Badesul, agência estadual de fomento que sofreu calote de R$ 65 milhões do empreendimento e, agora, depende da venda da área para reaver parte do prejuízo.
Em dezembro de 2011, o local pertencia à Granja Carola e foi desapropriado com a indenização de R$ 3,9 milhões. Doado à Iesa, foi preparado para receber a produção de componentes da indústria naval. Quando a empresa assinou o financiamento de R$ 40 milhões com o Badesul, em setembro de 2012, o terreno foi apresentado como garantia bancária, com o valor de R$ 13,9 milhões. O salto de R$ 10 milhões ocorreu, segundo a empresa, pela construção de um atracadouro. A Iesa entrou em recuperação judicial em setembro de 2014, paralisou atividades, demitiu funcionários e não pagou o Badesul, que ficou com o prejuízo.
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Foi a partir deste momento que surgiram mais problemas em torno da área em Charqueadas. No processo de recuperação judicial, a própria Iesa avaliou o terreno em R$ 75 milhões, com a pretensão de vender o patrimônio e ratear a cifra entre os credores. O Badesul, que depende desta área para ser ressarcido, concordou com a análise da empresa, mesmo que técnicos tenham alertado a diretoria do banco sobre a possibilidade de supervalorização.
Servidores experientes foram contrários à avaliação. Consideraram o valor de R$ 75 milhões superestimado e pediram a nomeação de perito para análise independente, o que não ocorreu.
A Iesa construiu pavilhões e levou máquinas para Charqueadas. Isso ampliou as cifras envolvidas, configurando as "garantias evolutivas" – tudo o que é agregado ao terreno. Ainda assim, chefes da assessoria jurídica do Badesul se opuseram ao valor indicado.
Consultoria avaliou local em R$ 3,75 milhões
A pedido de Zero Hora, o escritório Avalor, instalado em São Paulo e especializado em engenharia de avaliações, fez análise do terreno da Iesa com base nos procedimentos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e concluiu que ele vale R$ 3,75 milhões. A cifra é próxima da adotada no ato da desapropriação.
Os dados da Avalor revelam que, para a área chegar aos R$ 75 milhões indicados pela Iesa no processo de recuperação, é preciso que existam R$ 71,25 milhões em instrumentos da indústria naval e benfeitorias sobre o terreno.
– O equipamento é muito específico, tem chance menor de liquidez e a depreciação é acelerada. Os bens móveis são vendidos basicamente a preço do peso (aço e ferro) – explica o engenheiro Breno Jardim Kuhn, perito em avaliações e diretor-técnico da Avalor.
Os componentes da Iesa que restaram no local estão depreciando há cerca de dois anos. Denúncias entregues ao Tribunal de Contas do Estado, inclusive com fotos, dizem que caminhões encostaram na planta da empresa e saíram carregados de peças, fato que não poderia ter acontecido depois de o complexo ter sido dado como garantia na recuperação judicial. ZH esteve no terreno, à beira do Rio Jacuí, e constatou um gigante adormecido, com sinais de deterioração.
À época do embate acerca de valores, por decisão do então presidente do Badesul, Marcelo Lopes, a chefia do jurídico do banco foi trocada devido à resistência em aceitar a avaliação da Iesa. E os sucessores acataram o entendimento da diretoria e peticionaram para que a Justiça aceitasse o montante de R$ 75 milhões como o valor de referência para o terreno.
Fontes próximas da Iesa consultadas por ZH informaram que a empresa investiu R$ 90 milhões em infraestrutura na planta. Em condições normais, esse seria o ponto de partida para negociação. O problema é a queda brutal do setor, o fracasso do polo naval de Charqueadas e a depreciação dos bens móveis, como máquinas.
Fontes oficiais do caso não se manifestaram. O escritório Delloite Administração Judicial, designado para gerir a recuperação da Iesa, apenas disse que "não possui conhecimento sobre eventual avaliação atualizada do terreno em pauta". O mesmo ocorreu na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo, onde corre o processo.
Em documento de dezembro de 2015, a Iesa detalhou plano para quitar dívidas e apresentou nova valorização para o terreno, que custaria agora R$ 88,5 milhões.
Direção ignorou alerta técnico em empréstimo à Cotrimaio
O empréstimo de R$ 10 milhões do Badesul para a Cooperativa Agro-pecuária Alto Uruguai (Cotrimaio), de Três de Maio, em 2012, é um dos casos em que pareceres da área técnica do banco foram contrariados por decisões de diretoria. Depois de a negociação encontrar objeção no comitê de crédito, que apontou a incapacidade financeira da cooperativa, a direção do Badesul resolveu bancar, apesar dos riscos.
O resultado foi o mesmo de outros contratos em que foram flexibilizadas boas práticas bancárias: a Cotrimaio entrou em inadimplência, solicitou liquidação extrajudicial e, hoje, deve cerca de R$ 25 milhões à agência de fomento.
Havia orientação política do Piratini para que os bancos estaduais – BRDE, Banrisul e Badesul – socorressem a Cotrimaio com linha de capital de giro disponibilizada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para recuperar cooperativas. Ficou estabelecido que cada uma das três instituições repassaria R$ 10 milhões. O entrave veio no Badesul: longo parecer do comitê de crédito foi desfavorável. A diretoria do banco, comandada pelo então presidente Marcelo Lopes, chamou a responsabilidade para si e resolveu aprovar o financiamento à revelia do laudo. Como a operação com a Cotrimaio era de nota C – em escala do AA ao H –, a direção tinha a prerrogativa.
Houve discussão entre membros da cúpula e a então diretora de Operações, Lindamir Verbiski, braço direito de Lopes, liderou o movimento de desconsideração ao veto do comitê de crédito. O servidor que emitiu o parecer contrário, depois do embate com Lindamir, foi transferido para fora do Badesul, passando a atuar em uma secretaria de Estado.
No caso da Cotrimaio, em uma tentativa de compensar a fragilidade financeira para a concessão de R$ 10 milhões em empréstimo, o Badesul fez pesadas exigências de garantias bancárias. Foi preciso hipotecar patrimônio da cooperativa e os diretores colocaram bens próprios como fiança, além da assinatura de notas promissórias rurais com valores entre R$ 20 mil e R$ 40 mil. Ainda assim, o banco entrou em prejuízo na operação.
Depois de prevalecer a tese de assinar contrato, a liberação de R$ 30 milhões para a Cotrimaio foi anunciada em ato político no Galpão Crioulo do Piratini, durante o governo Tarso Genro. Além do Badesul, a operação gerou prejuízo a Banrisul e BRDE.
Histórico do descalabro
- No governo Tarso Genro, de 2011 a 2014, o Badesul, banco de fomento, multiplicou exponencialmente a liberação de financiamentos, principalmente para clientes de risco.
- A política da instituição resultou em calotes porque empresas que tomaram empréstimos não fizeram os investimentos projetados nem pagaram as prestações. Muitas entraram em recuperação judicial.
- A aposta do governo era injetar recursos no desenvolvimento e na modernização da economia do Estado, mas houve equívocos de avaliação de garantias, alta concentração de empréstimos em poucos clientes e baixas taxas de rentabilidade.
- Três exemplos de inadimplência são os financiamentos à Iesa Óleo e Gás (R$ 40 milhões), à Wind Power Energia (R$ 50 milhões) e à D'Itália Móveis (R$ 10 milhões). As três devem, em valores corrigos, R$ 157,6 milhões ao Badesul.
- O Banco Central pediu explicações sobre as operações com a Iesa e a Wind Power. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) abriu duas inspeções extraordinárias para apurar as operações.
- Após reportagem de ZH revelar as operações de risco e os calotes milionários sofridos pelo Badesul, o Piratini abriu sindicância, que está tomando depoimentos dos envolvidos. O trabalho é coordenado pela Procuradoria-Geral do Estado.
- O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) rebaixou, em 14 de setembro, a nota da agência gaúcha a zero, impossibilitando a captação de recursos da instituição federal. Isso praticamente inviabilizava o Badesul, que busca 98% dos seus capitais no BNDES.
- Em 28 de setembro, o Badesul apresentou plano de contingência e recuperou a nota de 2,2, o que garantiu margem para tomar cerca R$ 130 milhões junto ao BNDES.
CONTRAPONTOS
O que diz a Iesa Óleo e Gás
ZH enviou e-mail à assessoria de imprensa, mas não houve retorno.
O que diz Lindamir Verbiski
ZH ligou na segunda-feira duas vezes para o local de trabalho de Lindamir, em Curitiba, mas ela não foi encontrada.
O que diz Silceu Dalberto, presidente-liquidante da Cotrimaio
"Não sabia que técnicos tinham sido contrários. Pedimos aos três bancos (Badesul, BRDE e Banrisul) empréstimos em 2009, só aprovados em 2012. A demora castigou a Cotrimaio. Como haviam se passado três anos, (os valores) ficaram baixos diante do que a cooperativa precisava. Em 2013, houve estiagem, não conseguimos honrar juros e parcelas e pedimos liquidação. Com o Banrisul, renegociamos. Com o BRDE, estamos quase. O Badesul ainda não respondeu nossa proposta. Vamos pagar."
O que diz Marcelo Lopes
Para ambos os casos, afirma que "Informações alheias ao processo de concessão são meras especulações":
Sobre a Iesa Óleo e Gás
"As garantias reais de que (o Badesul) dispõe foram reconhecidas como regularmente constituídas pelo juiz responsável, quando homologou o Plano de Recuperação Judicial da empresa. A Iesa teve que apresentar laudo econômico-financeiro e de avaliação dos seus bens e ativos. O imóvel dado em garantia foi oficialmente reavaliado em valor suficiente para cobrir o saldo devedor. "
Sobre a Cotrimaio
"O processo de concessão do crédito obedeceu tanto aos ritos internos do Badesul quanto as exigências estabelecidas pelo Banco Central e pelo BNDES. A operação dispõe de garantias suficientes para ressarcir o Badesul, não cabendo se falar em calote."
*ZERO HORA