À primeira vista, quem circula pelas ruas centrais de Erechim, a 370 quilômetros de Porto Alegre, vê uma profusão de estabelecimentos comerciais, canteiros verdes bem cuidados e o vaivém tranquilo de veículos e pedestres, típico das cidades do Interior. Mas uma caminhada atenta pelas avenidas Sete de Setembro e Maurício Cardoso, no Centro, é suficiente para perceber que, de perto, nem tudo vai bem.
Pequenos negócios fechados e salas vazias, onde se multiplicam cartazes de "aluga-se" e "vende-se", chamam a atenção de quem passa, tanto quanto as obras paradas e o mau estado do prédio da prefeitura. Nas lojas, comerciantes reclamam de queda no faturamento, e não é difícil encontrar desempregados em busca de nova chance. Pelas calçadas, os produtos ofertados por vendedores ambulantes já não são exclusividade de imigrantes senegaleses e haitianos. Hoje, garantem o sustento de muitos erechinenses também.
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Santa Rosa: onde a crise ficou no retrovisor
A crise ganhou contornos dramáticos na cidade quando as duas principais empresas instaladas no distrito industrial – responsáveis por cerca de 3 mil empregos diretos e centenas de indiretos – entraram em colapso. Uma depois da outra.
A primeira foi a Intecnial, fundada no fim da década de 1960, especializada em elaborar projetos de engenharia e fabricar tecnologia para os setores de logística, agronegócio e energia. Em maio deste ano, a Justiça autorizou o pedido de recuperação judicial da companhia, que acumulava um passivo estimado em R$ 160 milhões, além de R$ 23 milhões em dívidas tributárias.
Dias antes do pedido de recuperação, a empresa decidiu desligar 127 pessoas. O processo acabou suspenso na Justiça a pedido do Ministério Público do Trabalho. Os empregados foram readmitidos, mas a Intecnial continuou em dificuldades. No início de outubro, após reunião com o Sindicato dos Metalúrgicos e assembleia com os funcionários, ficou acertada a demissão coletiva de 250 profissionais, ainda neste mês.
– Infelizmente, considerando o endividamento e a crise no setor, foi inevitável. Tínhamos um grande contrato que acabou sendo cancelado, e isso foi a gota d'água – diz a assessora jurídica da Intecnial, Daniele Kalinoscki.
Em setembro, a montadora de ônibus Comil, uma das gigantes do setor, com 30 anos de atuação no mercado, seguiu o mesmo caminho, depois de contabilizar dívidas de R$ 430 milhões e de demitir 828 colaboradores – quase metade da folha em uma só tacada, sobressaltando a cidade. Em janeiro, a companhia já havia fechado uma fábrica em Lorena (SP), fruto de um projeto mal sucedido.
Por meio de notas oficiais, a direção atribuiu as demissões à gravidade da crise no país e à queda de 60% nos negócios envolvendo ônibus nos últimos três anos, retrocedendo "a níveis de 20 anos atrás". A medida provocou alvoroço e foi alvo críticas do sindicato, que classificou a condução dos desligamentos como "desrespeitosa".
– A Comil simulou negociações conosco e, enquanto isso, entrou com o pedido de recuperação judicial para pedalar a dívida que tem com os trabalhadores. Agiu de forma irresponsável – afirma o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do município, Fábio Adamczuk.
Em resposta, a empresa definiu a entidade de classe como "irredutível" e "insensível" diante do momento crítico. Segundo o advogado da companhia, Darcio Vieira Marques, os representantes da categoria "não aceitaram negociar".
– Sabemos que ser demitido é doloroso, mas não havia saída – pondera o advogado.
Sem acesso a seguro-desemprego e FGTS por quase dois meses, os demitidos tiveram de contar com a compreensão de parentes e de credores. Foi o caso de Emanuele Pilotto, 28 anos. Ela era analista de qualidade na fábrica desde 2012 e não resistiu à onda de dispensas. Desde então, conta com a ajuda de familiares para sustentar o filho, Pedro Antônio, de um ano.
– Sempre tive orgulho de trabalhar na Comil, porque era uma referência na cidade. Foi um choque o que aconteceu. O clima já andava ruim, mas a gente não tinha noção da realidade. Ninguém imaginava que a dívida era tão alta – conta a desempregada.
Emanuele teme não voltar ao mercado de trabalho e sabe que, se conseguir vaga, dificilmente manterá o padrão de vida que tinha antes da reviravolta:
– A verdade é que estamos no escuro. Não sabemos como vai ser o dia de amanhã.
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As incertezas de Emanuele são compartilhadas com os 10 membros da comissão de ex-funcionários, que ficou responsável por representar os colegas em audiências públicas na Justiça do Trabalho. O grupo inclui profissionais como a laminadora Rosmeri Fritsche, 46 anos, que tinha mais de duas décadas de casa, e o montador Ederson Basso, 32 anos de idade e oito de empresa. A mulher dele, Marli, também trabalhava na linha de montagem e foi despedida. Os dois têm um filho de 4 anos para criar e ainda estão pagando o financiamento da casa própria, no valor de R$ 700 mensais.
– Se não fosse meu pai, eu já teria desistido de tudo. Cortei o que podia – afirma Basso.
No dia 13 de outubro, em assembleia organizada pelo sindicato, o grupo decidiu homologar as rescisões para poder ter acesso aos direitos trabalhistas. Quanto ao pagamento das rescisões, a quitação dependerá do plano de recuperação da empresa. A intenção, segundo o advogado Darcio Vieira Marques, é parcelar em 15 vezes.
O efeito cascata na economia
A avalanche de demissões, praticamente ao mesmo tempo, desencadeou efeitos colaterais imediatos, amplificando a crise. Empreendimentos de menor porte que prestavam serviços ou forneciam peças para a indústria foram atingidos e, em muitos casos, fecharam as portas ou tiveram de fazer cortes drásticos. Resultado: cedo da manhã, a fila já está formada diante da agência local do Sistema Nacional de Emprego (Sine), na Rua Itália. São homens e mulheres de todas as idades, com as mais variadas especialidades, em busca de alento.
Chef de cozinha experiente, Rosmarie Zanin, 51 anos, trabalhava para a empresa responsável por preparar as refeições dos funcionários da Intecnial. Ela cuidava do jantar e, aos poucos, o número de pessoas servidas foi diminuindo, até que sua presença deixou de ser necessária.
– Eu trabalhava à noite, e o turno foi encerrado. No fim, cuidava de tudo sozinha. É triste, porque sou boa no que faço – lamenta Rosmarie.
Agora, ela planeja fazer pães e bolachas caseiros para vender na vizinhança e, com isso, garantir o sustento enquanto não encontra oportunidade melhor. Sonha em abrir um negócio próprio.
Com uma pastinha embaixo do braço, o soldador Jurandir Barbosa, 48 anos, também procurou o Sine no último dia 10 para encaminhar seguro-desemprego. Conseguiu o benefício, mas não sossegou até ir pessoalmente ao distrito industrial, junto à BR-153, entregar currículos.
Até ser demitido, em setembro, Jurandir atuava em uma empresa do ramo metalmecânico que fornecia peças para a Comil, soldando alavancas de emergência para janelas de ônibus. Segundo o proprietário do negócio, que pediu para ter o nome preservado, o serviço caiu 90% com a crise.
– De 15 funcionários, sobraram três. O patrão explicou que não tinha o que fazer e que, se a Comil se reerguer, vai chamar a gente de volta. Estou torcendo para isso – diz Jurandir.
Natural de Piracicaba (SP), ele se casou com uma gaúcha e foi convencido por ela a se mudar para Erechim em 2010, quando ainda sobravam empregos na cidade. Soldador com experiência, não teve dificuldades para ser contratado. Por coincidência, foi na Comil onde tudo começou.
Na manhã de 10 de outubro, procurou seis fábricas atrás de alternativas. Na maioria, ouviu a mesma frase: "Não temos vagas". Em uma delas, Jurandir mal foi recebido:
– Disseram para eu jogar o currículo na caixa de correio.
Empresários em compasso de espera
Coordenador da agência do Sine em Erechim, Gabriel Jevinski, 56 anos, vê com preocupação a perda de vagas. Só neste ano, 911 postos de trabalho fecharam no município, segundo registro do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho, divulgado em agosto – sem contar, portanto, os 828 demitidos da Comil em setembro e os 250 da Intecnial, neste mês.
Jevinski também é proprietário de uma pequena empresa na cidade, a Erechim Comércio de Bebidas e Alimentos, administrada pela filha dele, Camila, 22 anos. O empreendimento nada tem a ver com o setor metalmecânico, mas foi afetado da mesma forma, por conta da redução no consumo, motivada por falta de dinheiro ou por precaução.
– Na prática, a crise acabou afetando todos os setores, e a maioria das empresas teve de reduzir quadros, inclusive a minha – afirma Jevinski.
Com uma queda de 50% no faturamento, ele foi obrigado a dispensar cinco dos seis funcionários de janeiro para cá. Por mês, gasta cerca de R$ 2 mil com o aluguel do depósito, onde mantém estoques de água, refrigerante e cerveja, e ainda está pagando o financiamento de dois caminhões. Tem conseguido manter as portas abertas graças à comercialização de produtos para supermercados locais.
No mercado imobiliário, a situação é semelhante. E é visível na paisagem urbana, com uma série de obras paradas. Vice-presidente do Sindicato da Construção Civil de Erechim, o arquiteto Gilmar Fiebig afirma que, em comparação com 2014, houve redução de 20% do número de novas edificações aprovadas na cidade.
Dono da Fiebig Construções, uma das mais tradicionais construtoras da cidade, ele próprio teve de pisar no freio e segurar as obras em dois prédios. Em um dos casos, a terraplanagem já estava pronta, e o material para as fundações já havia sido comprado. Hoje, o local está fechado, protegido por tapumes, à espera da retomada da economia.
– Recuamos para evitar problemas. Vivemos de credibilidade e não podemos botar em risco a nossa história – diz o construtor.
Mesmo quem não foi afetado diretamente pela crise em Erechim passou a conter investimentos. Além disso, alguns clientes rescindiram contratos. Só em setembro, na empresa de Fiebig, foram nove casos do tipo, envolvendo a compra de apartamentos e de terrenos.
Para preservar os negócios, o empreendedor desligou cerca de cem trabalhadores este ano, de um total de 150, mas espera reabsorver a mão de obra assim que o cenário melhorar. Ele também decidiu manter – ainda que em ritmo mais lento – as obras do futuro Blue Open Hotel, concebido com padrão quatro estrelas, com sauna, piscina e outras comodidades.
– Minha vontade era inaugurar este ano mesmo, mas decidi deixar para o início de 2017, porque espero que, até lá, as coisas estejam melhores. Estamos passando por um momento difícil, mas não podemos desanimar. Vamos sair dessa – projeta.
Esperança na recuperação
Como Gilmar Fiebig, empresários, líderes de entidades e autoridades locais creem na capacidade de recuperação do município. Presidente do Conselho Regional de Desenvolvimento do Norte do Estado (Corede Norte), Paulo José Sponchiado acredita que o momento é de aprendizado e de crescimento.
– O impacto é grande, mas temos de ser otimistas. É preciso aprender com a crise, refletir sobre o que aconteceu, e, a partir daí, buscar alternativas – avalia Sponchiado, que também é diretor-geral do campus local da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI).
– A comunidade precisa reencontrar o seu caminho e, com a ajuda de todos, vai reencontrar – afirma Luiz Francisco Schmidt (PSDB), prefeito eleito em outubro com 12 votos de diferença em relação à atual vice-prefeita, Ana Oliveira (PMDB).
Uma das apostas da comunidade é transformar Erechim em um polo na área da saúde. A recente aprovação do curso de medicina da URI, que deve começar a operar em 2017 no campus do município, faz parte da estratégia. A expectativa é de que a faculdade atraia capital humano e financeiro à região. Mas os planos vão além disso.
– Temos um projeto de desenvolvimento local que passa por cinco vetores. Um deles é o turismo. Nossa colônia é forte e tem muitos atrativos. Por que não explorar mais esse lado? – questiona Claudionor Mores, da Associação Comercial, Cultural e Industrial.
A necessidade de ampliar a diversificação da economia e, com isso, evitar a dependência de grandes empresas, é um consenso. Segundo o atual prefeito, Paulo Alfredo Polis (PT), isso já vem ocorrendo – só o número de agroindústrias, por exemplo, saltou de oito para 72 nos últimos anos. Polis também diz que existem 118 pequenas e médias empresas, de diferentes segmentos, dispostas a se instalar no novo distrito industrial, uma área de 450 mil metros quadrados junto à BR-153, que já ganhou um trevo de acesso. Os espaços devem começar a ser licitados até o fim do ano.
– Tenho convicção de que as dificuldades são pontuais e passageiras. A crise pegou forte o setor metalmecânico, mas nós vamos superar – aposta o prefeito.
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