O pouco que os aposentados da Varig ainda recebem do plano de previdência privada Aerus poderá acabar na próxima terça-feira, dia 3 de dezembro. Terminou o dinheiro depositado a partir de 1982 pelos funcionários - a Varig e outras empresas participantes não contribuíram como deveriam. Mesmo abatidos com o fim da linha do Aerus, veteranos da companhia aérea pioneira no Brasil vão se reencontrar nesta sexta-feira, em Porto Alegre, para lembrar os 60 anos da formatura da primeira turma de pilotos da Varig.
Ex-comandantes, Fredy Wiedemeyer, Alfredo Flemming, Luiz Achutti, Ricardo Lobo, Jair Schütz e Mario Ungaretti são os remanescentes da turma inicial da Escola Varig de Aeronáutica (Evaer). A comemoração será singela, muito diferente dos tempos de glamour do início da aviação comercial: às 10h, haverá uma missa na Igreja São José, no Centro da Capital, seguida de um almoço. A simplicidade da cerimônia traduz a penúria de todos os 17 mil participantes - mil no Rio Grande do Sul - do Aerus. A partir da próxima semana, podem ficar desamparados. Integrante da comissão gaúcha de aposentados, Carlos Henke, 68 anos, conta que o fundo previdenciário está à míngua há anos. Aposentados e pensionistas de escalões médios da Varig recebem R$ 40 por mês. Comandantes e pilotos, que estariam no topo, ganham em torno de R$ 800. Quem já ocupou o posto mais alto da aviação civil agora depende da solidariedade de familiares e amigos.
- O valor pago atualmente é de apenas 8% do esperado - ressalta Henke, que se aposentou como gerente da Fundação Ruben Berta, nome que homenageia o celebrado ex-presidente da Varig.
Ressarcimento poderia salvar fundo
Henke diz que a situação é dramática. Com a falência da empresa, não houve indenização trabalhista aos funcionários. Recebendo migalhas do Aerus, famílias tiveram de raspar a poupança e vender os bens. As mais aflitas são as pensionistas - há viúvas que dependem dos filhos para comprar remédios.
No ocaso da Varig, a Secretaria da Previdência Complementar (SPC), do Ministério da Previdência Social, autorizou a companhia aérea a rolar, por 21 vezes, suas contribuições ao fundo. O dinheiro teria sido usado para manutenção e compra de querosene. Ao falir, não honrou o compromisso com a SPC.
Foi com base nessas renegociações de dívida que sindicatos de aeronautas e aeroviários ingressaram com Ação Civil Pública na Justiça, com o intuito de responsabilizar a União pela situação. A decisão inicial foi favorável aos integrantes do Aerus.
Uma tentativa de reaver parte dos recursos repousa nas gavetas do Supremo Tribunal Federal (STF). A Varig entende que o governo federal deve em torno de R$ 7 bilhões pelos prejuízos causados com o congelamento das tarifas, entre 1985 e 1992. Em maio deste ano, quando se imaginava que o STF julgaria, o ministro Joaquim Barbosa pediu vistas do processo, o que resultou em novo adiamento.
Outro pouso forçado no caminho: 3% sobre a venda dos bilhetes também deveria abastecer o Aerus, durante 30 anos, mas no nono ano uma decisão do Departamento de Aviação Civil (DAC), antecessor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), cancelou essa fonte de receita. A decisão rendeu uma ação na Justiça, há seis anos à espera de julgamento.
- A gente fica numa angústia, na busca de uma solução - diz Henke.
Interlocutora nas negociações com o governo, a ex-presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) Graziella Baggio lembra que quase houve acordo, em 2009. Agora, o assunto é tratado com discrição, para prevenir novas frustrações.
Pilotos levaram nome do Brasil pelo mundo
Na cabine de comando de modestos DC-3 ou possantes Boeing 747, os pilotos da Varig transportaram celebridades e chefes de Estado. Aos cinco continentes, levaram a rosa dos ventos, símbolo da companhia aérea, na cauda dos aviões. Muitas dessas lembranças devem ser suscitadas no encontro desta sexta-feira para lembrar os 60 anos da primeira turma da Escola Varig de Aeronáutica (Evaer).
Em meio à turbulência provocada pelo provável fim do Aerus, o ex-comandante Fredy Wiedemeyer é o agitador do reencontro da primeira turma de pilotos Varig, formada há 60 anos. Do quarto de 10 metros quadrados no apartamento onde mora, no norte de Florianópolis, abarrotado de relíquias dos países por onde andou, articulou com os ex-colegas pelo telefone a reunião. O gorro de couro usado no primeiro voo, a miniatura do avião a hélice do início da carreira e o diploma da Evaer estão expostos com orgulho.
Aos 79 anos, viúvo duas vezes, o porto-alegrense vive há duas décadas em Santa Catarina, desde que se aposentou. Percorreu 64 países, dominou cinco idiomas, morou em Lisboa, Los Angeles e Roma. As estrelas de cinema Lana Turner, Rock Hudson, Romy Schneider e Catherine Deneuve viajaram com ele. Enquanto presidentes, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Fernando Collor e o secretário-geral da ONU, Kurt Walheim, cumprimentaram-no na cabine. Em 1980, foi abordado várias vezes por um curioso João Paulo II, deslumbrado com a paisagem amazônica, na viagem de volta a Roma.
Dos 40 inscritos para a primeira turma de pilotos, 22 foram selecionados. Filho de um engenheiro alemão trazido a Porto Alegre para a construção da Usina do Gasômetro, Wiedemeyer ingressou nas aulas aos 17 anos. É o caçula dos experientes. Em dois anos de aulas teóricas, voos em simulador e mais de 150 horas práticas no aeroporto de São Leopoldo, 16 alunos receberam o brevê. Três migraram para outras companhias.
Os demais começaram em rotas pelo interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, cresceram com a Varig e se aposentaram nos anos 1990, ostentando nos ombros a divisa de comandantes master de rotas intercontinentais. No último voo, com 35 mil horas de navegação, Wiedemeyer se despediu com coquetel e champanhe oferecido pelos colegas. Era dezembro de 1992, saía de Los Angeles rumo ao Rio e tinha 60 anos, idade limite para pilotar rotas internacionais.
Criada em Porto Alegre em 1927, a Varig despontara como a principal empresa aérea nacional na década de 1950 e precisara formar pilotos e mecânicos para fortalecer os planos de expansão. Os formados na primeira turma são movidos pelas lembranças da empresa em que "tudo funcionava".
- Ainda sonho com o que eu vivi. As conversas com os colegas na cabine. Minha felicidade se deve ao fato de eu ter conseguido voar na Varig - suspira Ricardo Lobo, 85 anos, morador do Rio de Janeiro.
Na década de 1960, o ex-comandante pilotava um DC-3 para 30 passageiros, que saía de Porto Alegre e pipocava entre Tubarão, Araranguá, Florianópolis, Navegantes, São Paulo até chegar ao Rio. O mais rodado é Jair Schütz, 81 anos, de Porto Alegre. Viúvo há um ano, Luiz Achutti, 84 anos, também vive na capital gaúcha. Faz as contas no caderno onde anotara todas as rotas e descobre: só para Nova York foram 230 viagens:
- Era uma vida muito boa. A gente era respeitado. Piloto era tratado como autoridade. E a Varig custeava tudo. Isso não existe mais hoje. Nem é possível.
O gaúcho Alfredo Flemming, 80 anos, mora na Barra da Tijuca, no Rio, onde vive desde 1960, quando a Varig expandiu as operações, inclusive mudando a sede para a capital fluminense. Evita recordações para não se emocionar. Com o Aerus minguando, Achutti vendeu uma casa em Capão da Canoa e outra em Canela. Schütz acabou de se mudar para uma casa menor, na zona sul da Capital.