Há um ditado que ensina, desde a remota Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, que o cavalo de confiança e a faca de bom corte são credenciais do gaúcho.
Temível na época das revoluções das degolas e sempre indispensável como ferramenta de trabalho, a faca tornou-se um ícone rio-grandense. Atualmente, virou produto de exportação e objeto de desejo entre colecionadores do mundo.
O ofício se modernizou no Estado. O presidente da Associação Gaúcha de Cutelaria, Cássio Selaimen, confecciona facas que estão na cintura dos ginetes do Freio de Ouro, nas cenas do filme O Tempo e o Vento e ajudam entidades beneficentes em concorridos leilões. Já Rodrigo Menezes Sfreddo, de Nova Petrópolis, tornou-se mestre internacional em cutelaria, título obtido nos Estados Unidos.
Algumas peças podem custar R$ 20 mil. São como joias, com aço tipo damasco, cabo de fóssil de mamute ou ébano, mais detalhes em ouro. Outras, também raras, valem uma amizade. Reza a lenda que quem recebe a faca de presente deve retribuir com uma moedinha - mesmo fora de circulação. É um pagamento simbólico, para que o gume afiado não arranhe a camaradagem e perpetue a lealdade.
As facas de hoje seguem uma herança que se iniciou a partir do povoamento do Rio Grande. Os gaúchos sempre preferiram a lâmina, em tempos de guerra ou paz. Nas pendengas por questões de honra, duelavam com adaga - enquanto os cowboys americanos se batiam a tiros. Na Revolução Farroupilha, o general rebelde Antônio de Sousa Netto ordenava que as cargas de cavalaria fossem na base da espada e da lança, não queria ouvir um só disparo de arma de fogo.
Exibida com orgulho no ritual de fatiar o costilhar do churrasco, a faca gaúcha conquistou mercados. Luxuosa, vintage ou simples, hoje é vendida para Estados Unidos, Europa, Emirados Árabes, Rússia e América do Sul.
Mãos gaúchas forjam lâminas preciosas
Desde que o primeiro gaúcho assomou a cavalo no topo de uma coxilha, cuteleiros produzem facas de qualidade para todos os bolsos, desde os modelos rústicos dos peões até os preferidos dos fazendeiros, aqueles que ostentam incrustações em prata e ouro.
Nos primórdios, improvisavam lâminas a partir de trilhos de trem, molas de carros, disco de arado e cintas de barris. O aproveitamento de aço descartado continua, por eficiente e sustentável, mas a forjaria se aperfeiçoou lançando preciosidades disputadas no Exterior.
Os aceradores se sofisticaram. Rodrigo Menezes Sfreddo, 37 anos, de Nova Petrópolis, conquistou o título de master smith (mestre ferreiro, em inglês) num campeonato realizado nos Estados Unidos em 2009. Tirou o primeiro lugar e teve mais quatro facas selecionadas pela renomada American Bladesmith Society (Sociedade Americana de Lâminas).
A faca que elevou Sfreddo ao seleto grupo mundial de mestre em cutelaria, permitindo que coloque o sinete MS (master smith) nas suas peças, superou todos os testes de resistência. Primeiro, cortou um cabo de madeira dura. Depois, num só golpe, decepou uma corda de sisal. Em seguida, foi dobrada a um ângulo de 90º, sem se quebrar e perder o alinhamento. Por fim, para comprovar que o fio estava intacto - sem aqueles dentinhos -, serviu para depilar parte do braço de Sfreddo.
- Sou o único master smith da América Latina - informa o cuteleiro, que frequenta a Blade Show dos EUA desde 2003.
Sfreddo fez sua primeira faca aos 14 anos, tentando imitar a arma usada pelo ídolo Rambo (Sylvester Stallone) no cinema. Não parou mais. Hoje, exporta para Estados Unidos, Itália, Emirados Árabes. São peças que oscilam de R$ 2,5 mil a R$ 17 mil. Mais do que facas, são obras de arte. O aço é de damasco (270 folhas se comprimem até formar a única lâmina), com cabo de ébano ou de raridades como osso de mamute (o fóssil vem da Sibéria). No logotipo, a inscrição é em filetes de ouro 24 quilates: R. Sfreddo MS.
- Trabalho sozinho, faço apenas duas ou três facas por mês - diz o artesão, que teve as peças vendidas em apenas um minuto, após serem oferecidas na internet.
Dezenas de artífices em busca da perfeição se multiplicaram pelo Estado. Carlos Fernando Barth, 48 anos, de Novo Hamburgo, já exportou para Itália, Argentina e Uruguai, além de ter fregueses pelo Brasil. Despacha facas para lugares que nem conhece.
- Quando se vende uma peça, cria-se um vínculo, parece que aquela pessoa se torna amiga - comenta.
Barth trabalha por encomenda, produz em torno de cinco facas por mês e vive exclusivamente da sua forja. Tenta adaptar-se ao gosto dos clientes, que sugerem o formato de lâminas e enviam material exótico para a confecção dos cabos, como marfim de mamute e até osso de canela de girafa. Outros querem madeira nobre, com enfeites em ouro e prata.
- Cada peça é única, o limite é o que o cliente desejar - diz Barth, que tem preços entre R$ 300 e R$ 1,8 mil.
O mercado é tão próspero que o cuteleiro Eduardo Cunha, 41 anos, de Araricá, evoluiu para empresário. Mantém a linha artesanal (marca Criolla) que o projetou, com produtos em aço damasco e forjado, que foram parar nos EUA, na Rússia, na África e na Itália. Mas também decidiu fabricar em série (marcas Rodeio e Fortis) para conseguir atender as encomendas.
Cunha diz que empresas compram lotes - entre 200 e 500 unidades - para brindar clientes ou funcionários em datas comemorativas. Algumas pedem que as peças tenham uma logomarca adicional, da sua empresa. Também cresceu o interesse por conjuntos de trinchadores (faca, chaira e garfo) e para chefs de cozinha.
- As pessoas costumam comprar apenas um jogo de espeto e de talheres. Mas, quando se trata de faca, continuam comprando, colecionando - diz Cunha.
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