Vídeo que circula no Instagram afirma que não há recursos para empréstimos ao produtor rural no Plano Safra 2023/2024 e que os repasses feitos em julho foram inferiores ao verificado no mesmo mês de 2022, apesar do valor recorde previsto neste ano. A autora cita dados não consolidados à época e tira informações de seu contexto. Na comparação entre os meses citados por ela, houve, na verdade, aumento de repasse para a agricultura empresarial e perda em menor grau à produção familiar. Além disso, operando sob nova metodologia, os recursos do Plano Safra passaram a ser liberados de forma trimestral e, diante da alta demanda por crédito, os valores previstos para o primeiro trimestre foram, de fato, rapidamente absorvidos, gerando interrupção de algumas linhas de crédito. No entanto, houve antecipação de valores e retomada das linhas de crédito.
Conteúdo investigado: publicação no Instagram afirma que não há dinheiro para o Plano Safra 2023/24. Ela alega que, embora tenha sido anunciado um valor recorde à iniciativa pelo governo federal, a concessão de crédito pelas instituições bancárias que operam as linhas do plano está travada por falta de recursos. A autora do conteúdo afirma também que a agricultura familiar perdeu, na comparação de julho de 2023 com o mesmo mês de 2022, 47% dos recursos do Plano Safra, enquanto os médios e os grandes produtores teriam 36,8% a menos, o que estaria travando a cadeia produtiva do agronegócio no país. No fim do vídeo, ela questiona: “Onde vamos parar? Onde estão os recursos do Plano Safra?”.
Onde foi publicado: Instagram.
Contextualizando: lançado no fim de junho, o Plano Safra 2023/2024 teve recorde de recursos previstos para empréstimos a produtores rurais – R$ 435,82 bilhões (R$ 364,22 bilhões para agricultura e pecuária empresarial e R$ 71,6 bilhões para a produção familiar).
Nesta edição, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) alterou a metodologia para repasse dos recursos aos agentes financiadores, que são bancos e cooperativas de créditos. Agora, os valores são repassados a cada trimestre mediante o planejamento informado pelas instituições ao governo, e não mais por livre demanda dos produtores.
Esse contingenciamento, aliado à forte demanda por crédito no mês de julho, fez com que os recursos previstos para o primeiro trimestre fossem rapidamente consumidos nos primeiros trinta dias do programa, o que interrompeu algumas linhas de financiamento. Como resultado, o mês de julho de 2023, comparado com o mesmo mês de 2022, registrou queda de 8% no número total de contratos. O montante de recursos disponibilizados, no entanto, teve alta de 15%.
Se considerarmos apenas a produção empresarial (médios e grandes produtores), houve alta de 12% no número de contratos e de 21% no volume de recursos concedidos, e não queda de 36,8% do dinheiro. Já em relação somente à produção familiar, cujo crédito é repassado via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o mês de julho registrou quedas de 15% no volume de contratos e de 10% dos recursos concedidos, e não um montante 47% menor de verba.
Os percentuais, portanto, diferem dos apresentados no vídeo verificado. Isso porque, na época em que ele foi divulgado, os dados de julho ainda não haviam sido consolidados, informação que não é mencionada no conteúdo.
A informação divulgada – “não tem dinheiro para o Plano Safra” – também carece de contextualização. Após a interrupção de algumas linhas de financiamento, o governo federal antecipou recursos que estavam previstos para o trimestre seguinte.
Considerando-se os dois primeiros meses com dados consolidados (julho e agosto), o Plano Safra 2023/2024 registra aumento de 2,5% no número de contratos, de 21% no valor contratado e de 18% no valor médio por contrato. Já no Pronaf, há aumento de 1,2% no número de contratos e queda de 9,8% no valor do crédito concedido. Os dados de setembro ainda não foram fechados.
Como o conteúdo pode ser interpretado: da forma como os dados foram divulgados, há margem para a interpretação de que há irregularidades no repasse dos recursos do Plano Safra 2023/2024.
O que é o Plano Safra?
O Plano Safra oferece linhas de crédito para o financiamento das atividades de pequenos, médios e grandes produtores rurais no Brasil. Criado pelo governo federal em 2003, ele começa a valer no dia 1º de julho de cada ano, com validade até junho do ano seguinte, acompanhando o calendário das principais safras do país.
O programa oferece diferentes linhas de crédito, com taxas de juros subsidiadas, destinadas aos distintos tipos de produtores rurais. A intenção é estimular o aumento da produção agropecuária. Cada grupo de produtores (pequenos, médios e grandes) recebe um volume diferente de recursos e taxas de juros de financiamento distintas.
Repasses passaram a ser trimestrais
O Plano Safra 23/24 trouxe como novidade a liberação de recursos para as linhas de crédito de forma trimestral. A intenção por trás da nova metodologia é poder realizar uma avaliação das aplicações das instituições financeiras a cada trimestre, e remanejar o crédito onde for necessário. “Na medida que uma instituição fale que vai gastar determinada quantidade e não gaste, a gente não precisa esperar até o fim da safra para poder saber isso”, explica Guilherme Rios, assessor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
Entretanto, a demanda pelos recursos do Plano Safra não é linear, ou seja, a necessidade por crédito é mais alta em alguns meses do que em outros. A liberação de crédito de maneira trimestral teve por consequência o rápido esgotamento dos recursos que haviam sido previstos para o 1º trimestre. De acordo com Rios, a demanda é maior nos meses de julho e agosto, levando ao esgotamento temporário de algumas linhas de crédito no início de agosto. As linhas foram retomadas com a antecipação dos recursos do 2º trimestre, a partir do dia 25 do mesmo mês.
“Os bancos informam ao governo o que eles pretendem gastar a cada trimestre e o governo faz o repasse. A demanda foi tão alta que os bancos não esperavam. Então, o recurso que eles planejaram por trimestre acabou logo ali no fim de julho e começo de agosto, e a gente ficou algumas semanas sem algumas linhas de crédito. O que o governo fez? Ele teve que adiantar os recursos do segundo trimestre do plano safra para poder cobrir”, esclarece Rios.
Percentuais reais são diferentes do que autora citou
Em contato com o Comprova via WhatsApp, a autora da publicação no Instagram afirmou que os percentuais citados por ela sobre a queda de recursos do Plano Safra, na comparação de julho de 2023 com o mesmo mês de 2022, haviam sido divulgados por Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em entrevista à jornalista Kellen Moraes no programa Hora H do Agro, da Jovem Pan News, em edição exibida em 26 de agosto de 2023.
Lucchi faz de fato menção aos percentuais, mas tratando de queda no número de contratos, e não de recursos disponibilizados. O Banco Central, que faz o levantamento dos dados do Plano Safra, faz uma separação entre as duas coisas, uma vez que cada contrato tem valores diferentes cedidos.
No dia anterior, em 25 de agosto de 2023, a jornalista Kellen Moraes já havia mencionado os mesmos percentuais durante um comentário no Jornal da Manhã, também da Jovem Pan News, que foi transcrito em um artigo para o portal do veículo. Foram exibidas sobre sua fala duas cartelas com infográficos, com dados que teriam como fonte o Banco Central (BC) e a CNA.
A primeira delas trata de números de contratos e do volume de crédito concedido para a agricultura familiar com o Plano Safra, o que ocorre por meio da linha de crédito do Pronaf.
Já a segunda cartela exibe dados do crédito cedido a médios e grandes produtores, excluindo os agricultores familiares.
Na altura em que os gráficos foram veiculados, no entanto, os dados do Plano Safra referentes ao mês de julho de 2023 não estavam consolidados na Matriz de Dados do Crédito Rural, página do Banco Central dedicada a essa divulgação. Conforme o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) informou ao Comprova, a consolidação dos dados só é realizada a partir do terceiro dia útil do mês posterior ao mês subsequente. Ou seja, os números de julho de 2023 só teriam um retrato fiel a partir de 5 de setembro de 2023. Antes disso, segundo o Mapa, os dados consultados no BC variam diariamente, “levando a incorreções se a comparação for realizada, antes do fechamento, com o mesmo período do ano anterior”.
O Mapa também cedeu ao Comprova um balanço consolidado do Plano Safra nos dois meses comparados, a partir de dados do Sistema de Operações do Crédito Rural e do Proagro (Sicor), do Banco Central. O documento está disponível no site do governo federal.
Em julho de 2022, o Pronaf teve 144.753 contratos e concedeu R$ 6,939 bilhões em crédito, números que batem com os dados brutos da agricultura familiar divulgados pela Jovem Pan News para aquele mês. No entanto, em julho de 2023, foram assinados 123.291 contratos, e não cerca de 76,2 mil, e concedidos R$ 6,247 bilhões em crédito, e não cerca de R$ 5,04 bilhões.
Assim, de um período a outro, houve quedas de 15% no volume de contratos e de 10% dos recursos concedidos à agricultura familiar pelo Plano Safra, percentuais menores dos que foram divulgados pelo veículo e em parte replicados pela autora no post no Instagram.
Também em julho de 2022, foram fechados 190.990 contratos pelo Plano Safra, mas referentes a todas as linhas de crédito dele, incluindo o Pronaf, e não apenas às que atendem médios e grandes produtores, como apontou a Jovem Pan News. Eles totalizaram R$ 37,662 bilhões em recursos naquele mês.
Já em julho de 2023, foram assinados 175.168 contratos, e não cerca de 120,4 mil, que somaram R$ 43,382 bilhões, e não cerca de R$ 36,39 bilhões apresentados pelo veículo. Houve, portanto, na comparação entre os dois períodos, queda de 8% no número total de contratos e alta de 15% no montante de recursos disponibilizados.
Por fim, se considerada apenas a agricultura empresarial (médios e grandes produtores), ou seja, todas as linhas de crédito com exceção do Pronaf, houve alta de 12% no número de contratos, que foram de 46.237 para 51.877, e de 21% no volume de recursos concedidos, que passou de cerca de R$ 30,723 bilhões para R$ 37,135 bilhões de julho de 2022 em comparação com o mesmo mês de 2023.
Razão para a queda no Pronaf: taxa de juros
Apesar do valor recorde de financiamento no Plano Safra 2023/2024, o número de contratos e o volume de crédito liberado registraram queda no segmento da agricultura familiar, ao considerarmos apenas o mês de julho. Segundo o assessor técnico da CNA e o professor Omar Jorge Sabbag, do curso de Engenharia Agronômica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um dos fatores que explicam a queda nos números é a alta taxa de juros que, quando não subsidiada pelo governo, se torna desvantajosa para o produtor familiar. Com isso, ele acaba deixando de contratar o crédito.
Rios explica que essa é a maior dificuldade para que os empréstimos do Plano Safra cheguem até o produtor. Para isso, é necessário que haja verba disponível para que o governo subsidie parte dos juros praticados pelo agente financiador para que a taxa seja menor para o produtor – a esta operação dá-se o nome de juros equalizáveis. Caso contrário, o produtor da agricultura familiar, que depende desse subsídio, deixa de contratar o empréstimo. Ou seja, como diz Omar Sabbag, o crédito “trava”: está disponível, mas não em execução.
“Por mais que seja anunciado um volume de R$ 435 bilhões, não necessariamente todo o montante vai estar disponível”, diz Guilherme Rios. “Eu dependo dos recursos de subvenção para equalização das taxas do Pronaf, do custeio e do investimento. Neste ano, o volume que foi anunciado para essas subvenções dentro da Lei Orçamentária Anual já acabou. A gente espera do governo uma suplementação da parte equalizada, para que não falte recursos para o produtor.”
O patamar de juros equalizáveis previsto no Pronaf do Plano Safra 2023/24 é de 4% ao ano. Portanto, para que essa taxa seja atingida, é necessária a subvenção do governo. O professor dá um exemplo hipotético: “Vamos fazer uma analogia: eu vou lhe emprestar R$ 10 mil, e digo: ‘lhe cobro 15% de juros’. Aí vem, digamos, um parente seu e se predispõe a cobrir metade desses juros. Só que chega um determinado momento que esse seu parente não consegue mais subsidiar. O dinheiro permanece disponível comigo, mas, se o seu parente não subsidiar a metade, você vai ter que me pagar 15% de juros. Aí eu lhe pergunto: você vai conseguir bancar? O mais provável é que você desista do empréstimo”.
Outros fatores para redução de contratos no Pronaf
Além da dificuldade na obtenção de juros subsidiados, Sabbag cita outros obstáculos que atingem principalmente o produtor da agricultura familiar. Um deles é a dificuldade de comprovar junto ao agente financiador a capacidade de pagamento do crédito que se pretende contratar:
“É preciso apresentar um projeto técnico que demonstre a capacidade de pagamento para aderência ao crédito. Nele, constam diversas informações, como o croqui da área e a descrição das principais atividades. Enfim, não é algo simples. O médio e grande produtor tem uma assessoria mais robusta para produzir esse projeto técnico. Já o pequeno produtor está mais vulnerável”.
Há, ainda, o problema do endividamento, como mostrou matéria do Brasil de Fato.
“Muitas das vezes o produtor familiar não consegue ter um controle adequado da produção. Ele pode chegar ao final de uma safra com um lucro abaixo do esperado e ter prejuízo diante das taxas de juros que precisa pagar. Assim, ele chega endividado na safra seguinte e, automaticamente, o banco o classifica como restrito a crédito. Aí o financiamento do Plano Safra ‘trava’ para ele.”
O professor ainda cita outros empecilhos de ordem burocrática para acesso ao financiamento, como dificuldade em obter licenças ambientais, específicas para cada tipo de produção, e o Cadastro Ambiental Rural (CAR): “O CAR é uma espécie de RG do produtor e é um dos documentos exigidos para a contratação do crédito. Em relação a ele, há uma assimetria informacional. O produtor sabe que tem direito, mas muitas das vezes não sabe como obtê-lo, que órgão deve procurar”.
Dados do acumulado julho/agosto em 2022 e 2023
De acordo com a Matriz de Dados do Crédito Rural do Banco Central, no acumulado de julho e agosto de 2023 em comparação com o mesmo período de 2022, houve aumento de 2,5% no número de contratos, de 21% no valor contratado e de 18% no valor médio por contrato. Os dados brutos podem ser conferidos nas tabelas abaixo:
Considerando-se apenas os dados do Pronaf, os números registram, na comparação entre julho e agosto de 2022 com o mesmo período de 2023, aumento de 1,2% no número de contratos. Porém, há queda de 9,8% no valor do crédito concedido.
Alcance da publicação: o Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. No Instagram, foram 91.5 mil visualizações, 4.1 mil likes e 181 comentários.
Como verificamos: o comprova consultou dados referentes ao Plano Safra no site do governo federal, em matérias publicadas na imprensa e em portais de entidades do setor como a CNA. Foram consultados o professor Omar Jorge Sabbag, do curso de Engenharia Agronômica da Unesp, e o assessor técnico da CNA, Guilherme Rios. O Comprova ainda fez contato com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e analisou dados sobre o crédito rural no site do Banco Central. Além disso, entramos em contato com a autora da publicação original para questionar onde os dados por ela divulgados haviam sido consultados.
Por que investigamos: o Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: o Comprova já checou outros conteúdos relacionados ao agronegócio. Em julho, foi verificado que o Brasil se comprometeu a diminuir a emissão de gás metano e não a reduzir produção agropecuária, como afirma post. Anteriormente, também verificamos que vídeo engana ao atribuir ao PT proibição de plantio de soja em Mato Grosso e que não há registro público de declaração de Lula nem do MST sobre eliminar agronegócio da Terra.