Na hierarquia de importância das relações, é comum sermos levados a acreditar que o topo do ranking precisa ser ocupado prioritariamente por família, filhos e parceria romântica, ao passo que amizades seriam menos dignas de receber investimento de tempo e carinho. Nadando contra essa correnteza está a jornalista Larissa Magrisso, criadora da plataforma Lúcidas, projeto que reúne dados, propõe discussões e tenta mostrar que as amizades entre mulheres merecem o mesmo status que costuma ser dado para as outras relações pessoais.
Um dos principais motivos, revela, é porque essa relação especial do mundo feminino contribui muito para a felicidade das mulheres em várias fases da vida.
— O campo da amizade feminina possivelmente é aquele em que o cuidado que a mulher coloca é mais recíproco. Quando estou com minhas amigas, estou sendo mais eu mesma, não estou sendo mãe, esposa ou filha de alguém, papéis em que a mulher geralmente é a cuidadora. Sem contar que já tem dados mostrando que estar com as amigas ajuda a reduzir os níveis do hormônio do estresse e melhora a saúde — detalha Larissa.
Investir nas amizades entre mulheres também é cuidar do futuro. Para a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de livros como A Invenção de uma Bela Velhice e A Arte de Gozar, seus mais de 30 anos pesquisando mulheres e envelhecimento permitem afirmar que uma das mais importantes condições para se construir uma bela velhice é ter amigas.
Um dos estudos que embasam essa afirmação foi feito há pouco mais de 10 anos, com cinco mil participantes, entre homens e mulheres. Nele, a antropóloga observou que, para as mulheres com mais de 60 anos, as amigas têm uma importância fundamental em sua felicidade, pois são elas que cuidam, escutam, conversam, levam ao médico, telefonam para saber como a outra está. Quando as participantes da pesquisa foram perguntadas sobre “quem você acha que cuidará de você na velhice?”, responderam que serão ou elas próprias ou amigas.
Além da possibilidade de envelhecerem juntas, a antropóloga também tem identificado que as amizades são valiosas, pois oferecem uma liberdade de escolha muito maior do que os laços familiares:
— Quando você escolhe uma amizade, não tem motivos para ficar com alguém que te diminui. Na maturidade, você escolhe melhor as pessoas que te acrescentam e fazem você ser sua melhor versão. Tenho visto nas minhas pesquisas que quando você encontra amigas com quem tem boa química, esse se torna o seu maior capital. São relações em que há alta cumplicidade, confiança, amor incondicional e um nível de intimidade que você não tem com mais ninguém, só com as amigas.
Rivalidades
“Mulher não é amiga de mulher” ou então “mulheres só se sacaneiam” são noções que continuam fortes no discurso da rivalidade feminina. Por outro lado, explica Larissa Magrisso, a cada ano tem ganhado mais força o entendimento de que as mulheres tendem a sair ganhando quando são amigas e levantam umas às outras. A jornalista pós-graduada em Desenvolvimento de Grupos acredita que isso se deve, em parte, a movimentos que buscam igualdade, incentivam a liderança feminina, a união entre as mulheres e denunciam assédio, como, por exemplo, o #MeToo e organizações como a Think Olga:
— Está rolando um despertar coletivo onde as mulheres questionam suas noções de felicidade, amor, família, futuro e envelhecimento, e começam a perceber que as amigas devem ser prioridade também. Na onda mais recente do feminismo, a gente vem quebrando a rivalidade, entendendo que não é preciso ser inimiga da ex do seu marido, nem da sua colega de trabalho, que é importante se unir. Mas a ideia da rivalidade feminina, por mais que esteja perdendo força, ainda é algo muito cultural.
Os grandes saltos de amizade acontecem nos momentos em que a gente se mostra, conta sobre um sofrimento, um desejo, algo mais íntimo
LARISSA MAGRISSO
Jornalista
Inimiga do “ou isso, ou aquilo”, Mirian Goldenberg acredita que dá para pensar o tema por meio da fábula dos Dois Lobos: todos os humanos têm, dentro de si, dois lobos que estão sempre em conflito, o lobo ruim e o lobo bom – e o que vence a batalha é aquele que é alimentado. Trazendo o enredo para o tema da amizade entre mulheres, a ideia é, portanto, reconhecer que o bicho da rivalidade feminina existe, mas tentar não o nutrir.
— Existe, inclusive, entre amigas. Mas há também uma maior consciência de que é muito melhor trabalhar juntas e compartilhar do que ficar lutando uma contra a outra. Há amigas para quem você olha com inveja, pensa “ela tem muito mais sucesso, é mais bonita, seu marido é mais amoroso e romântico”, mas quanto mais consciente estamos destes pensamentos, melhor conseguimos trabalhar isso dentro da gente para conseguir amar e ser amiga dessas mulheres — confia Mirian.
Deixando a inveja e a competitividade em segundo plano, um dos grandes benefícios de uma amizade, onde cumplicidade e amor estão bem consolidados, é que a pessoa se torna alvo de um olhar que tende a ser mais acolhedor e compassivo do que o seu próprio olhar para si mesma.
— Percebo muito nas minhas pesquisas que nós somos mais amorosos, carinhosos, generosos e compreensivos com o outro do que com nós mesmos. No meu caso, por exemplo, como sou muito crítica, sofro demais com tudo e me entrego demais aos problemas que aparecem, o olhar generoso de fora, vindo das minhas amigas, me ajuda a encontrar o rumo e até uma saída para situações em que estou enrascada — descreve a antropóloga.
Manutenção
Não é o dinheiro, nem as conquistas profissionais, tampouco a dieta saudável e os exercícios físicos: um estudo feito pela universidade de Harvard ao longo de 85 anos apontou que são os relacionamentos – amizades, família, parcerias românticas, colegas de trabalho, entre outros – que mantêm as pessoas felizes e mais saudáveis. A pesquisa tem aparecido nas investigações de Larissa Magrisso sobre amizade feminina, especialmente no que diz respeito ao conceito de “social fitness”:
— No “social fitness”, eles fazem o paralelo de que, se hoje preciso me exercitar pela minha saúde, bem-estar e porque quero ter uma velhice em que esteja bem de cabeça e bem de corpo, também preciso exercitar os vínculos com as pessoas.
Mas numa rotina cheia de demandas – e muitas vezes de culpa por não atender boa parte delas –, como exercitar o músculo da amizade? Para Mirian Goldenberg, a resposta é individual e sem fórmula pronta, mas pode ter a ver com criar um compromisso sério com algumas poucas pessoas com quem a química da amizade é mais forte.
— Tem a ver com tempo, investimento e com priorizar esses amigos que você escolhe ter na sua vida. E não ser amigo de todo mundo, porque esse tipo de amizade de que falo dá muito trabalho. Hoje, o que mais me faz feliz e realizada é quando meus poucos amigos me dizem, “você é minha melhor amiga”, ou então quando os filhos telefonam e eles atendem com “agora não posso falar, estou com minha amiga” — cita.
Embora seja delicioso fazer um happy hour com as amigas, se encontrar com elas nem sempre precisa ser sinônimo de gastar dinheiro. Larissa Magrisso entende que a amizade é um campo criativo que permite diversos rituais, os quais podem, inclusive, proporcionar um mergulho mais profundo na intimidade de cada uma:
— Que tal se encontrar e cada uma levar um texto para ler, ou um sonho, ou uma pergunta? Dá para fazer tricô juntas, marcar a viagem anual das amigas. Dá para fazer uma apresentação de PowerPoint de retrospectiva para vocês contarem como foi o ano, exporem qual foi a grande besteira que fizeram, abrir conversas difíceis. Os grandes saltos de amizade acontecem nos momentos em que a gente se mostra, conta sobre um sofrimento, um desejo, algo mais íntimo.
Para fazer amigas
No ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a solidão é uma ameaça urgente à saúde global, pois traz riscos ao bem-estar equivalentes a problemas como tabagismo, consumo de álcool, sedentarismo e obesidade. É claro que há quem esteja muito bem sozinha e que realize coisas incríveis sem priorizar as amizades, apontam as entrevistadas desta matéria, mas para pessoas que desejam um vínculo social mais profundo e não estão conseguindo, a solidão machuca.
O olhar generoso de fora, vindo das minhas amigas, me ajuda a encontrar o rumo e até uma saída para situações em que estou enrascada
MIRIAN GOLDENBERG
Antropóloga e escritora
Há algumas estratégias apontando caminhos para criar novas relações e consolidar amizades, e Larissa Magrisso apresenta, a seguir, três delas. A primeira é apostar em lugares de convivência periódica, ou seja, de fato ir fazer aquele curso de línguas, aquela especialização, ir na academia, frequentar um clube de leitura, etc.
— Esse movimento tira um pouco da camada de dificuldade que é ter que marcar de encontrar com a pessoa. Sem contar que, assim, vocês já têm pelo menos um interesse em comum que os une — cita Larissa.
Outra estratégia, proposta originalmente pela psicóloga e comunicadora Esther Perel, é confiar que você não é uma pessoa desinteressante e que possui qualidades que farão os outros gostarem de você. A pesquisadora chama o tema de gap de afinidade, o qual Larissa explica:
— Nesse gap da afinidade, já entro na interação social achando que as pessoas não vão gostar de mim. Só que na realidade, quando essa interação é medida em pesquisas, o que temos visto é que as pessoas gostam da gente muito mais do que se imagina. Então a dica de Esther é “confie!”.
Por fim, a terceira dica – talvez a mais desafiadora –, é se vulnerabilizar e tentar ser o sujeito que faz os convites. Mas nesses casos, pondera a criadora do Lúcidas, é bom tomar cuidado para não levar as eventuais recusas para o lado pessoal:
— Eventualmente não vai rolar, mas se de 10 tentativas, uma der certo, pode ser um encontro superlegal. E aí entra em jogo o investimento, ser curiosa, ouvir mais do que falar, olhar de verdade para a pessoa e fazer perguntas boas, não ficar só no “o que você faz da vida?”.