A forma como a sociedade costuma se organizar faz com que seja muito fácil a interação entre pessoas com idades parecidas. Elas têm as mesmas referências, cresceram em contextos parecidos, frequentam os mesmos ambientes, falam com as mesmas gírias, assistem às mesmas séries, gostam das mesmas bandas. Mas existe um universo rico, repleto de trocas de afeto e de experiência, que se apresenta nas amizades entre pessoas que nasceram em momentos bem distintos.
— Somos divididos socialmente por guetos. Temos creches para crianças, lares e instituições para idosos, adultos estão sempre trabalhando, não têm tempo nem para olhar para baixo, nem para cima. Quando têm filhos, unem-se em grupos de pais e mães. Então, é normal que as pessoas acabem se filiando apenas a quem tem idade semelhante à sua. Acabam não experimentando a amizade intergeracional, onde todo mundo sai ganhando — afirma a psicóloga e mestre em gerontologia pela PUC-SP, Divina de Fátima dos Santos, que também atua como professora do Centro Universitário Módulo.
Quando pessoas de gerações diferentes criam um laço, o resultado é de benefício para todos, aponta um estudo publicado pela Universidade de Stanford, dos Estados Unidos, em 2016. Segundo o relatório, as pessoas mais velhas podem dar aos jovens e crianças um tipo de atenção e de orientação que eles possivelmente não receberiam de mais ninguém, especialmente se são jovens em situação de vulnerabilidade. Por outro lado, ao contribuir para o bem-estar dos mais novos, o idoso acaba cultivando uma sensação de propósito, experimenta o entusiasmo de "ver o mundo por uma perspectiva mais jovem" e também aprende sobre novas tecnologias.
Outro benefício, segundo Divina, é para a saúde mental. Com menos isolamento e mais interação entre pessoas de diferentes gerações, a depressão, a ansiedade e até o suicídio ficam mais distantes:
O jovem passa a ter uma tolerância muito maior com o tempo convivendo com uma pessoa mais velha do que ele
DIVINA DE FÁTIMA DOS SANTOS
psicóloga e mestre em gerontologia
— Se houvesse uma aproximação maior entre pessoas de gerações diferentes, elas teriam condição de ter uma estabilidade emocional muito maior. Uma pessoa com 50 anos, a depender de como viveu e das vivências que acumulou, tem muita experiência e poderá dar dicas e ensinamentos à mais jovem. Esta, por sua vez, favorece que o mais velho se renove, se atualize, busque estar antenado, estar sempre no tempo presente.
Olhando especificamente para as gerações que vivem imersas em tecnologia — e que, com isso, estão em todos os lugares ao mesmo tempo e querem "tudo para ontem" —, a psicóloga defende que a amizade com pessoas mais velhas pode ser saudável no combate à ansiedade.
— O jovem passa a ter uma tolerância muito maior com o tempo convivendo com uma pessoa mais velha do que ele, afinal, ele tem que esperar mais, entende que não terá uma resposta agora, compreende que "tenho um emprego X, mas para conseguir um emprego melhor, vou ter que fazer Y coisas". Isso favorece para que o indivíduo fique menos ansioso — afirma.
Vínculos reais
Para contar sobre os benefícios dessa relação, Donna fez um convite às seguidoras do Instagram que vivem isso no dia a dia: "deixe seu comentário no post se você tiver uma grande amiga de uma geração diferente da sua". A moradora de Porto Alegre Glades Neutzling, de 67 anos, foi uma das que respondeu, orgulhosa da sua rede de amigos de todas as idades. Convivendo com os mais novos, relata que está aprendendo a encarar os perrengues com muito mais leveza do que ela própria fez no passado:
— Me divorciei do primeiro marido com um filho de um ano para criar. Também só pude concluir a minha faculdade aos 50 anos, várias coisas foram muito difíceis e acabei levando a vida com muito negativismo. Só que hoje converso com os mais jovens e vejo que passam pelos mesmos problemas, mas, talvez em função da tecnologia e das facilidades, resolvem. Acabo me impregnando dessa energia.
No dia da entrevista, Glades levou uma das amigas especiais ao Parque Germânia, Letícia Kiefer Flores — a propagandista tem 33 anos, menos da metade da sua idade. Elas se conheceram há 20 anos, quando a mais nova ainda era adolescente e Glades era chefe e amiga do seu pai. As famílias passaram a frequentar a casa uma da outra, e a amizade delas cresceu com o tempo.
Nas conversas com Letícia, Glades acaba tendo insights sobre como os seus próprios filhos — são dois, uma mulher e um homem — estão pensando, o que ajuda na relação. Também tem nela carinho, paciência e compreensão, especialmente quando tem dificuldades para baixar um aplicativo de celular ou fazer uma compra online. Já para Letícia, dos vários benefícios que vêm dessa amizade, um dos maiores é poder se espelhar em alguém que é exemplo de superação:
— Hoje tenho uma filha de nove anos e me separei do pai dela quando ela tinha três. É muito desafiador ser mãe solo e mostrar o mundo para essa criança como se eu fosse duas pessoas, mãe e pai. Só que Glades viveu algo muito parecido e sempre a vi se virar, batalhar. Me espelho muito nela, sou guerreira. E ela me acolhe muito no quesito psicológico, porque sabe que essa situação não é fácil.
Via de mão dupla
Segundo a pesquisadora em psicologia e diretora do Centro de Longevidade de Stanford, Laura Carstensen, que esteve à frente do estudo divulgado em 2016, à medida que as pessoas envelhecem, seus cérebros melhoram de muitas maneiras, inclusive na capacidade de resolver problemas complexos e na habilidade de lidar com questões emocionais. Essa sabedoria em tempos de crises pode ajudar muito os mais jovens.
Antes de ser amiga, a relações públicas de 52 anos Janice Gularte foi a mentora de Ana Paula Gomes Lima. A jovem de 26 anos entrou na vida de Janice em 2017 como uma estagiária inexperiente, mas entusiasmada, que topou o desafio de trabalhar com marketing digital em uma empresa de Porto Alegre.
Temos uma conexão muito mais forte do que com as amigas da minha idade
ANA PAULA GOMES LIMA
sobre amizade com Janice Gularte
— Nós fazíamos qualquer tarefa que precisasse, éramos uma dupla. Alguns até invejavam porque nasceu uma amizade e uma confiança plena. E ela não passava a mão na minha cabeça. Apontava quando eu tinha que me aperfeiçoar em algo — relembra Ana Paula, hoje formada em jornalismo.
Entre empreitadas profissionais, encontros para um café e happy hours regados à cerveja após o expediente, a amizade cresceu e permanece forte mesmo agora que não trabalham mais juntas. Elas juram que o que menos importa é a idade uma da outra: são cúmplices, trocam confidências, memes, colo e conselhos como fariam com qualquer outra amiga.
— Até hoje é assim. Sempre que tenho uma conquista pessoal, a primeira pessoa para quem penso em contar é ela. Ela me entende, é mulher, trabalhamos na mesma área — relata Janice durante entrevista na All For Coffee, na Capital.
Para Janice, a amiga mais moça traz sempre uma perspectiva arejada do que está rolando no meio profissional delas e a estimula a enxergar suas próprias qualidades:
— Um tempo atrás, estava insatisfeita com o trabalho e pensando em me movimentar, mas hesitando por conta da idade e da estabilidade. Disse "tenho que tentar agora porque estou velha, daqui a pouco não vou conseguir mais nada" e ela me xingou, fez eu abrir os olhos. Com 50 anos, me movimentei.
Além de uma gestora que inspira Ana Paula, a amiga mais velha é também uma interlocutora que não foge de um diálogo mais profundo:
— Temos uma conexão muito mais forte do que com as amigas da minha idade. Muitas vezes, você quer sair e ter um papo profissional, um papo de família, de vida, e com a Janice a gente se aprofunda nos temas, não ficamos no raso.
De peito aberto
O beach tennis, o futebol de final de semana, a academia, o ambiente de trabalho e a praia são exemplos de lugares que costumam propiciar os encontros entre as gerações. Mas para consolidar amizade, aponta a psicóloga Divina de Fátima dos Santos, só a ocasião não basta. É preciso estar de peito e mente abertos:
É necessário ter abertura emocional a ponto de conseguir perceber uma pessoa com o dobro ou a metade da sua idade como alguém interessante, porque a verdade é que todos têm algo a ensinar e aprender
DIVINA DE FÁTIMA DOS SANTOS
psicóloga e mestre em gerontologia
— É necessário ter abertura emocional a ponto de conseguir perceber uma pessoa com o dobro ou a metade da sua idade como alguém interessante, porque a verdade é que todos têm algo a ensinar e aprender. Mas tem que ultrapassar o preconceito com idade, que é algo generalizado. Não pense que é só o jovem que não quer ficar com o velho, as pessoas mais velhas também nutrem essa visão de que um jovem não sabe nada.
O julgamento dos outros é uma realidade e pode representar um obstáculo às amizades intergeracionais. Entre Janice e Ana Paula, não foram poucas as vezes em que antigos colegas de trabalho questionaram, após ver as duas juntas "Ué, vocês continuam se encontrando? Então eram amigas mesmo, né?", estranhando e quase invalidando essa forma de amizade.
Mas embora esses laços ainda sejam tabu para algumas pessoas, as entrevistadas garantem que o ganho pode ser imenso.
— Baixe a guarda, tente conhecer a pessoa, deixe acontecer e não fique preocupada com julgamento social. E cuide para você não a julgar nem assumir ares de educador e conselheiro só porque você é mais velho que aquela amiga — recomenda Janice.
Para Glades, amiga de Letícia, o segredo para começar uma amizade está "nas pequenas doações diárias", nos gestos que mostram que a pessoa está aberta ao diálogo e disposta a oferecer uma parte do seu tempo:
— É sobre dar um sorriso, um bom dia quando passar em frente à casa da pessoa, oferecer um copo de água para alguém que está trabalhando. Acho que o início da amizade depende muito mais dessas doações.