Uma série de violências permeia o caso da atriz Klara Castanho, que veio a público no último sábado (25) para relatá-lo em uma carta aberta publicada nas redes sociais. A artista de 21 anos contou que foi estuprada e que não foi bem acolhida pelos serviços de saúde quando procurou atendimento e descobriu uma gravidez já avançada.
"O médico não teve nenhuma empatia por mim. Eu não era uma mulher que estava grávida por vontade e desejo, eu tinha sofrido uma violência. E mesmo assim o profissional me obrigou a ouvir o coração da criança, disse que 50% do DNA eram meus e que eu seria obrigada a amá-lo", escreveu Klara. Certa de que não queria ser mãe e de que não poderia dar amor ao bebê, ela optou pela entrega legal à adoção.
Trata-se de um direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina que a gestante ou a mãe que tenha interesse em entregar seu filho à adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude e fará parte de um processo com sigilo garantido tanto para a mulher como para a criança. Este direito não foi respeitado no caso da atriz, que relata ter sido ameaçada por uma enfermeira que havia estado na sala de cirurgia no dia do parto. "Ela fez perguntas e ameaçou: 'Imagina se tal colunista descobre essa história'", narrou Klara.
Pouco tempo depois, a atriz recebeu mensagens do colunista e de um outro blogueiro, que queriam mais informações acerca de sua situação. "Apenas o fato de eles saberem, mostra que os profissionais que deveriam ter me protegido em um momento de extrema dor e vulnerabilidade, que têm a obrigação legal de respeitar o sigilo da entrega, não foram éticos, nem tiveram respeito por mim e nem pela criança", ressaltou na carta aberta.
A promotora de Justiça da Infância e da Juventude de Porto Alegre Cinara Dutra Braga comenta que o tratamento dado a Klara, no hospital e na internet após sua manifestação pública, revela incompreensão da legislação e desrespeito à mulher. Segundo a promotora, tanto mulheres grávidas de relações consentidas quanto aquelas que são vítimas de abuso podem escolher não serem mães, optando pela entrega responsável sem serem julgadas ou expostas por isso.
— Essa mulher fez tudo o que tinha que ser feito. Foi uma conduta responsável, uma conduta de alguém que, mesmo no intenso sofrimento, conseguiu pensar na criança e dizer "se eu não estou preparada para ser mãe e não tenho condição de dar amor, há outras famílias que têm". Foi muito triste o que ela passou, pois ela foi cuidadosa e ainda assim teve sua vida privada exposta. O que aconteceu com a Klara foi errado. Ela tem direito de entrar com ação indenizatória contra as pessoas que fizeram o vazamento da informação de foro íntimo — diz Cinara.
Em qualquer momento durante o pré-natal ou após o nascimento da criança, a mulher tem o direito de recorrer aos serviços de Justiça e informar que não quer exercer a maternidade, explica a promotora. É possível buscar atendimento diretamente no Juizado da Infância e da Juventude, órgão que organiza as audiências do processo de entrega legal, ou ainda contar com o intermédio de Ministério Público, Centro de Referência da Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Conselho Tutelar e demais entidades de proteção e acolhimento à mulher.
O processo segue um rito: é marcada uma audiência, que ocorre após o nascimento da criança, e neste momento é uma obrigação dos serviços públicos informar a mãe sobre programas de suporte que os governos oferecem, como auxílios financeiros e de saúde (física e mental). Munida dessas informações, a mulher pode dar prosseguimento à entrega para a adoção, se desejar.
— Se a mulher tem alguma condição de cuidar, mas não se sente preparada, primeiro vamos tentar dar o suporte. Oferecemos alternativas para que possa permanecer com seu filho. E, depois disso, se a mulher entende que não quer ficar com o filho, ela pode fazer sem que isso seja considerado um demérito. Não é um crime. A entrega voluntária e de forma responsável é um ato de amor — afirma Cinara.
Há mais de 30 mil pessoas na lista do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) habilitadas à adoção no Brasil e que aguardam sua chance de formar uma família. A informação de que uma mulher está entregando a criança para o SNA é sigilosa. Ela também não tem a obrigação de informar quem é o pai, nem de informar qualquer pessoa sobre a sua decisão.
— Os habilitados na lista do SNA foram antes avaliados por psicólogos, assistentes sociais, passaram pelo Ministério Público e foram preparadas antes de começar as entrevistas com técnicos. A criança vai ser entregue para uma pessoa que quer formar família, idônea, que tem condição financeira para dar sustento, e não uma pessoa que talvez vá pegar a criança para maltratá-la. Entregar judicialmente a criança significa a mulher estar tranquila de que o seu filho vai ser cuidado por alguém que foi investigado e que tem condições de dar todo o cuidado e o afeto que aquela pessoa que está entregando não tinha — pontua Cinara.
A assistente social Maria Guaneci Marques de Ávila, de Porto Alegre, lembra que casos semelhantes ao de Klara se repetem, com menos repercussão, na vida de mulheres em todos os cantos do país, sejam elas ricas ou pobres. Por causa de sua atuação como promotora legal popular junto à Themis, entidade gaúcha que ampara mulheres em situação de violência, Maria afirma que presenciou histórias que revelam que os serviços públicos e a sociedade não estão sabendo acolher as mulheres. E que, como resultado, elas acabam sofrendo novas violências depois que buscam ajuda.
— Imagine a dor de já ter passado por uma violência sexual, descobrir uma gravidez e, para completar, não encontrar profissionais e serviços que digam “estou aqui para te acolher e te escutar”. É desesperador. Temos muitas Klaras Castanho no Brasil, em Porto Alegre, no Estado, nas periferias, e todas elas precisam de ajuda e de apoio. O fato de sermos mulheres nos coloca sob um risco maior de violências, sejam elas de quaisquer profissões ou categorias. Precisamos de empatia e de serviços preparados para lidar com a situação dessa moça e de tantas outras mulheres que engravidam. Precisamos também de um olhar das pessoas, da sociedade e da família que acolha essas mulheres. Que direito as pessoas têm de julgar? Elas não estão na pele dela e não sabem o que ela sofreu — destaca.
Conselhos de Enfermagem se solidarizam com a atriz
Sobre o possível vazamento ilegal de informações sigilosas de Klara, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) publicou no domingo (26) uma nota em que manifestou solidariedade à atriz, afirmou que está apurando a ocorrência e que tomará providências para identificar os responsáveis pelo vazamento.
"O princípio basilar da Enfermagem é a confiança. Portanto, a(o) profissional de saúde que viola a privacidade da(o) paciente em qualquer circunstância comete crime e atenta eticamente contra a profissão, conforme prevê o Art. 82 do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Casos assim devem ser rigorosamente punidos, para que não mais se repitam", diz trecho da nota.
De acordo com a coordenadora do setor de Processos Éticos do Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren-RS), Anelise Oswald, ao que tudo indica, o caso de Klara vai justamente contra premissas da categoria como a confiança e o sigilo, previstas no Código.
— Temos um código de ética que proíbe que segredos do paciente por ventura expostos em razão do exercício da assistência em enfermagem sejam repassados a terceiros, a pessoas que não estejam participando diretamente da assistência. A partir daí o Conselho instaura um processo ético para averiguar a conduta e, se constatada infração, o profissional poderá ser punido — comenta Anelise.
A coordenadora ainda esclarece que, conforme a lei, as penalidades podem ser advertência, multa, censura e suspensão do exercício profissional por um período – já a cassação do direito ao exercício da profissão não está prevista para o caso em questão.
Questionada se há, no Ensino Superior, disciplinas específicas sobre cuidados com os direitos das mulheres gestantes, Anelise destacou que questões ligadas à grade curricular acadêmica não são de competência do Coren, mas ressaltou que sigilo e proteção das informações — premissas ensinadas e juramentadas pelos profissionais — são válidos para todo e qualquer paciente.