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Pessoas com alguma vontade de trabalhar pelo próximo nunca faltaram, conforme Maria Elena Johannpeter observa desde 1996, quando chegou ao Palácio do Comércio e encontrou uma fila dando voltas no prédio do Centro Histórico de Porto Alegre. Intrigada, perguntou ao porteiro para o que era aquela multidão toda.
– Parece que uma mulher chamou gente na TV para trabalhar de graça, dona.
A mulher, claro, era ela. No dia anterior, ela fizera uma breve participação no Jornal do Almoço convocando pessoas interessadas em trabalho voluntário por seis meses, para uma iniciativa que chamou de Laboratório de Verão. Às câmeras, fez um apelo por cidadania que no dia seguinte se transformou em um problema, quando teve de dispensar 200 das cerca de 300 pessoas que atenderam ao chamado:
– Mas aquela mulher disse que precisava de mim! - diziam, enquanto tinham o nome anotado para um eventual contato no semestre seguinte, caso houvesse uma nova edição do projeto.
Ao subir para o oitavo andar, onde a ONG tem sede até hoje, encontrou duas mesas em frente aos elevadores para evitar que o andar fosse tomado. Foi assim, em meio ao caos, que nasceria em poucos meses a Parceiros Voluntários, que neste ano completa duas décadas. A ideia, desde sempre, foi a mesma: aproximar instituições que necessitavam de voluntários a pessoas com vontade de oferecer ao próximo "seu tempo, sua experiência e sua emoção", nas palavras da fundadora. Aproximar necessidades de vontades.
A abundância de voluntários, todavia, Maria Elena se deu conta cedo de que era enganosa. Quando o primeiro ciclo se encerrou, dos cem voluntários, 10 haviam ficado até o final do semestre. E das 10 instituições cadastradas, apenas duas ainda contavam com eles. Perguntada sobre os motivos, ela aponta para um cartaz atrás de si: mais especificamente para a primeira letra da sigla ONG.
– Tudo o que fizemos nós aprendemos fazendo. Eu não sabia nada sobre a forma correta de mobilizar pessoas e menos ainda sobre o que fazer com elas. Estava aposentada e tinha apenas esse insight de ser uma multiplicadora de serviços sociais. Eu me dei conta da importância da palavra "organização" nessa sigla.
Nas brochuras de divulgação da Parceiros Voluntários, bem como em outras instituições de assistência social, se repetem os números de pessoas atendidas, sempre acompanhadas de pessoas sorridentes por ajudar e outras tantas sorridentes por estarem sendo ajudadas. Porém, se trata de um processo de aproximação mais complexo de que um candidato a voluntário imagina.
Ao conversar com aquelas primeiras 90 pessoas sobre o que havia dado errado, eram constante insatisfações dos dois lados:
"Eu sou um contador, e me colocaram para limpar os vidros" ou "O voluntário chegou aqui querendo mudar tudo. Minha instituição funciona há duas décadas do meu jeito!".
Por isso, até hoje o primeiro passo para o ingresso na Parceiros Voluntários é acessar o site da ONG e marcar uma RC: reunião de conscientização. Com hora marcada, o candidato ouvirá de um orientador as responsabilidades envolvidas no processo. A ideia, além de apresentar os candidatos ao mundo do voluntariado, é afastar determinados tipos que, nas palavras de Maria Elena, mais atrapalham do que ajudam.
– São os voluntaristas. Eles estão ali por um desejo, por uma vaidade. Se tem sol, querem ir a uma creche brincar com as crianças. Se tem chuva, querem ir a um asilo ouvir as histórias dos velhinhos. Depois, entram no carro e desaparecem. Vão quando querem e a hora que querem. Saem dali se sentindo bem, e a instituição fica para trás. A nossa primeira tarefa, portanto, é conscientizar as pessoas de que elas terão de dedicar o tempo e a experiência delas. Só depois, se estiverem dispostas a seguir, elas vão escolher o quanto de tempo dedicar, que tipo de serviço oferecer, até onde se dispõem a se deslocar, e assim por diante.
Do outro lado deste elo, estão as entidades que recebem os voluntários da ONG, que devem igualmente ser bem preparadas para receber. Segundo a fundadora da Parceiros, para tal elas são tratadas como pequenas unidades de negócio. Não têm o objetivo de gerar lucro, mas gerem orçamentos e atendem a um público. Após receberem cursos de gestão, Maria Elena salienta que hoje essas instituições já estão "muito mais espertinhas" sobre fazer bom uso dos voluntários.
Outro discurso que se repete com fluidez na fala de Maria Elena é de que voluntariado é diferente de caridade.
– Doadores são igualmente importantes, mas não é dinheiro que precisa ser doado quando se é voluntário. Até porque o que é doado é um bem material, não volta. O voluntário dá coisas que não são tangíveis, e recebe de volta outras tantas.
Nesse ponto, ela modula a voz para repetir o maior dos maiores clichês sobre o voluntariado:
– A pessoa acha que está ali para ajudar ao próximo, mas com o tempo se surpreende que a ajudada foi ela.
Maria Elena já falou essa frase - que ela assegura ser a mais pura verdade - tantas vezes que já virou piada dentro da ONG. Ela mesma conta que certa vez assistiu a um pot-pourri de vídeos dela falando em nome da Parceiros Voluntários ao longo dessas duas décadas, e percebeu que a única mudança foi a de seus cabelos. Ela garante, porém, que passar uma vida repetindo o mesmo discurso, as mesmas frases, em nome de uma causa, não cansa nem dá a sensação de enxugamento de gelo:
– Nós estamos falando de mudar uma cultura, e essa transformação é um processo de cem, 200 anos. Nós trabalhamos para implementar no Brasil um pensamento que outros tantos países já têm no DNA. O de que políticas públicas têm a sua importância, é claro que têm, mas a maior parte dos nossos problemas nós conseguiríamos resolver por nós mesmos, nos mobilizando em torno dele.
Também por acreditar ser parte de um processo de séculos, e não de décadas, que Maria Elena decidiu discretamente passar o bastão da administração da Parceiros Voluntárias. Agora, tocar o dia a dia da ONG fica a cargo do superintendente José Alfredo Nahas:
– Acho saudável que a Parceiros Voluntários ainda possa contar com a minha experiência em vida ao mudar a administração, para que eu ainda esteja presente nos momentos em que houver dúvidas nessa transição.
Embora a organização não tenha passado ilesa pela crise econômica, que fez com que perdesse parte significativa dos seus donativos e reduzisse o quadro de funcionários, Maria Elena é otimista em relação ao futuro, sobretudo por testemunhar e perceber duas mudanças de mentalidade nos últimos anos. A primeira, da iniciativa privada, que foi forçada pelo próprio público a adotar projetos de responsabilidade social:
– No meu tempo, se dizia que o segredo era a alma do negócio. Essa virada foi de 180 graus. Hoje, a transparência é a alma do negócio. Se uma marca te diz: "mude o mundo", o público diz: muda tu primeiro. Nós nos beneficiamos desse cenário.
E a principal mudança, atesta, é na mentalidade dos jovens com quem a ONG realiza projetos de voluntariado infantojuvenil, como o Tribos nas Trilhas da Cidadania, voltado a escolas. Os "tribeiros" atuais, garante, nasceram com um novo pensamento e uma nova postura de protagonismo. Por isso, temas como inclusão, justiça social e sustentabilidade nunca estiveram tão presentes. E não como antagonistas do sistema, mas como parte de um discurso desenvolvimentista de civilização. São pessoas que vieram ao mundo para mudá-lo, não apenas para usufruir. Mas o que mudou para a juventude estar diferente? Os pais estão criando crianças diferentes?
– Não, não.
A educação mudou?
– Não.
Vem delas mesmo?
– Sim.
Mas como, de berço?
– Isso. Eu acredito que o século 21 é um início de milênio em que uma nova mentalidade se estabeleceu na Terra. Mas aí é outro campo.
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