Letícia no Vietnã | Foto: arquivo pessoal Letícia na Tailândia | Foto: arquivo pessoal Letícia no Camboja | Foto: arquivo pessoal :: O que vi e vivi: leitora conta a experiência de ser mãe em produção independente :: Mãos ao próximo: voluntários revelam como mantêm o espírito natalino vivo durante o ano inteiro
Letícia Mello, 28 anos, vive viajando. Mas não apenas para conhecer novos lugares e pessoas mundo afora: o que a leva a cada destino é o trabalho voluntário e a possibilidade de fazer diferença na vida de uma comunidade. Viaja leve, com pouca bagagem, e volta com histórias como a vida simples, de pé no chão em um pequeno vilarejo no Camboja ou a experiência de viver com uma família hippie em um parque nacional da Austrália.
"Não quero que me vejam como um anjo que quer ajudar todo mundo"
Quando alguém pergunta de onde sou, gosto de responder, com um sorriso: De lugar nenhum. Nasci em Cruz Alta, mas, na verdade, sou nômade. Não consigo parar em um lugar, e isto tem muito a ver com minha criação. Meu pai é engenheiro e, na minha infância, estava sempre em busca de melhores oportunidades. Por conta disso, até os 10 anos eu já tinha morado em quatro cidades diferentes e estudado em oito escolas. Aos 12 anos, nos mudamos para Curitiba e, aos 17, comecei a cursar Turismo e Hotelaria em Balneário Camboriú. No final do primeiro ano de faculdade, fui para os Estados Unidos em uma viagem de estudos e trabalho. O plano era ficar três meses em Wisconsin, mas acabei estendendo para quase sete. Trabalhei como salva-vidas em um parque aquático, fui camareira em um hotel e limpei mesas em um restaurante. Com o dinheiro que juntei, fiz um mochilão por Califórnia e Havaí antes de voltar para o Brasil. No ano seguinte, aproveitei as férias para morar com uma família no Peru para aprender espanhol e vivenciar uma nova cultura. Quando acabei o curso, queria ver o mundo, então fui fazer um estágio na Nova Zelândia e me formei por videoconferência, com o meu pai recebendo o diploma por mim.
Na volta ao Brasil, tinha uma turbulência dentro de mim. Fiz novas viagens, mas comecei a me questionar sobre o porquê de estar viajando, e não colocando minha energia em algo que fosse realmente transformador e interessante. Não estava feliz, e viajar por viajar, só para conhecer pontos turísticos, já não fazia sentido. Precisava ter um propósito. E foi assim que nasceu o projeto Do For Love, que une a paixão por viajar com meu desejo de ajudar.
Em 2013, uma das únicas maneiras de fazer trabalho voluntário era por meio de uma agência de turismo. Mas os preços não cabiam no meu orçamento. Por isso, comecei a procurar de maneira independente. Eu só queria ser útil para as pessoas e fiquei fascinada por um projeto social para ensinar inglês a crianças na província de Sakaeo, um pequeno vilarejo com pouco mais de 200 habitantes na Tailândia. Já tinha conhecido a Indonésia e ficado fascinada pela cultura asiática, então resolvi embarcar. O projeto procurava despertar o interesse das crianças pelo inglês, capacitando-as para que futuramente pudessem ter oportunidades melhores de trabalho. Além das crianças, dei aulas para a comunidade local, agricultores e monges.
O trabalho voluntário é uma troca na qual o dinheiro não está envolvido. Você dá o seu trabalho, e as pessoas te recebem na casa delas e te deixam comer na escola. Eu morava com duas professoras tailandesas, e a refeição podia ser um grilo frito no café da manhã, sentada sobre uma esteira de bambu no chão. Andava de pés descalços dentro de casa e da escola o dia todo. As condições de higiene não eram as melhores, havia dois sapos de estimação no banheiro, algumas aranhas no quarto e mil insetos por tudo quanto é lado. Compartilhávamos a comida e lavávamos as roupas à mão, tomava banho de caneca, dormia no chão e abraçava crianças o dia inteiro. Mas me sentia muito disposta, aprendi a sorrir ainda mais e dava pelo menos uma boa gargalhada todos os dias. Tinha pessoas ao meu lado que pensavam tanto em mim que às vezes eu mesma me esquecia disso. Todos cuidavam uns dos outros, sem interesses e sem recompensas. Era natural. Não precisava de roupas lindas e caras para me dizerem que estava bonita, pois escutava isso todos os dias. E aprendi a dizer isso a eles também. Porque são lindos em todos os sentidos. Não que a vida fosse perfeita, longe disso, mas era um bom parâmetro de comparação com a que estamos acostumados a levar.
Quando senti que já tinha feito tudo o que eu podia pelo projeto, e sendo uma das voluntárias que ficou por mais tempo, decidi ir para o Camboja e para o Vietnã, também dar aulas para crianças em pequenos vilarejos. Um dia, no Camboja, uma viúva apareceu na casa do diretor da escola desesperada, pois não tinha mais condições de cuidar dos filhos, e pediu que ele tomasse conta das crianças. Eu tinha US$ 800 enviados por amigos do Brasil e tive a ideia de construir uma casa perto da escola para que aquela senhora pudesse viver com os filhos. No dia em que os tijolos chegaram, todo mundo ajudou a fazer a base da casa. Depois, os locais assumiram a construção, pois são técnicas muito específicas, com bambu e palha. Em quatro dias, ficou pronto. Essa história representa muito para mim, pois foi possível graças a pessoas que estavam longe e nem sabiam direito o que estava acontecendo, mas queriam colaborar. Não quero que as pessoas me vejam como um anjo que quer ajudar todo mundo. Vejo nas viagens uma forma de, por meio do trabalho voluntário e de outras experiências, impactar a vida de outras pessoas - e elas me impactam. De alguma maneira, estou deixando alguma coisa na comunidade, não estou só passando por lá, estou ajudando na vida daquelas crianças que estão aprendendo inglês e vão sonhar com coisas ainda maiores. Temos muito a aprender uns com os outros. Além do trabalho voluntário em si, a troca entre pessoas, culturas e religiões é incrível, nos engrandece e se transforma em histórias que são compartilhadas e inspiram as pessoas a buscar um propósito e fazer algo que possa causar impacto.
Depois de seis meses vivendo essa experiência, voltei ao Brasil e, na sequência, fui morar em Nova York. Estava de novo trabalhando como garçonete juntando dinheiro para viajar e fazendo um estágio no International Rescue Committee, uma das maiores instituições do mundo que cuidam de refugiados. Mas tinha dificuldade de colocar as coisas em prática: minhas ideias precisavam passar por cinco aprovações até serem aceitas. Ajudei muitas pessoas e fiz coisas interessantes, mas aquilo não me preenchia, porque preciso colocar a mão na massa e ver as coisas acontecerem. Aí, tive um daqueles estalos da vida. Sempre gostei muito de escrever e contar histórias, mas nunca tinha tido coragem de fazer isso. Nesse momento, aconteceu uma das maiores mudanças da minha vida, porque olhei para aquilo tudo que eu tinha e, da noite para o dia, desisti de tudo: larguei minha vida em Nova York e voltei para o Brasil com a certeza de que iria escrever um livro e colocar o meu sonho para o mundo. Era isso que eu tinha que fazer, precisava viver do que acreditava, e isto significava espalhar o Do For Love e impactar pessoas. Por meio de um financiamento coletivo, escrevi e publiquei o livro Do For Love. No ano passado, retornei aos lugares nos quais trabalhei como voluntária para gravar um documentário que será lançado nos próximos meses.
Desde que voltei ao Brasil para fazer o livro e o financiamento coletivo, sou 100% nômade. No começo deste ano, fui para a Austrália, onde meu namorado e eu vivemos dois meses com uma família hippie em um sistema de troca. Ajudamos a família na limpeza e na administração em troca de morar com eles dentro de um parque nacional cheio de cangurus. Eles vivem de forma completamente sustentável e com foco na comunidade - seus filhos são criados com muita liberdade e contato com a natureza. Como acabei de viver isso, essa experiência ainda está muito forte na minha vida, me ensinando a rever conceitos.
No início do mês, cheguei sozinha na Índia para ficar 25 dias. Quero conhecer a história do Tibet e trabalhar com refugiados tibetanos, no norte do país. Estou seguindo meu coração, os lugares aonde quero ir e as histórias que quero conhecer. As pessoas me olham sempre viajando e acham que é um estilo de vida muito caro, mas vivo com muito pouco. É tudo uma questão do que priorizamos. Minha bagagem tem só o essencial: algumas peças de roupa, alguns livros do Do For Love, o passaporte e o computador. Hoje, o Do For Love é meu trabalho e minha fonte de renda, vivo da venda dos livros e das camisetas do projeto, além de palestras que dou quando estou no Brasil. Quando faço um trabalho voluntário, troco por hospedagem e alimentação. Minha vida é dividida entre o Brasil e essas experiências. A base é essa, mas o que vai vir pela frente eu não sei. Meu lema está escrito em uma das camisetas do Do For Love: o plano é não ter plano. Deixo o meu coração me guiar, pois acredito que é somente fazendo por amor que podemos impactar o mundo.
*Depoimento à repórter Rossana Silva, especial
♦ Viaje com a Letícia
Acompanhe as viagens de Letícia e o lançamento do documentário na página facebook.com/doforloveproject. Ela narra sua experiência com trabalho voluntário na Ásia no livro Do For Love, disponível para compra em store.doforloveproject.com.
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