Na chegada em Havana, com a mochila pesando os 18 quilos nas minhas costas, descobri que não tinha o número do prédio em que iria ficar. Sem internet ou telefone, comecei a perambular perdida pela região do endereço. Quando estava naquele momento que antecede o pânico e a crise de choro, um menino que não deveria ter mais de sete anos me observava de dentro do seu pátio e colocou a cabeça entre as duas mãos que agarravam os ferros da grade e chamou: "Está procurando alguém?". Meio sem levar fé, eu disse: "Eli, conhece?". Com os olhos bem pretos, ele olhou para mim: "Não, mas tem certeza que ela mora aqui?". Eu soltei um riso: "Não". Ele virou as costas e entrou correndo em casa, acredito que para confirmar com os familiares. Voltou com expressão de pesar e balançou a cabeça em sinal de negação. Sorri em agradecimento e dei meu jeito.
Ao longo da minha estada em Cuba, aquele guri, seu sotaque e sua receptividade voltaram com frequência aos meus pensamentos. Passei a acreditar que a cordialidade poderia ser um sinal do padroeiro dos nômades solitários. Desde lá, tenho reconhecido bondade nas pessoas. Ao que tudo indica, parece que ainda existe muita gente de boa índole espalhada por aí. Não foram poucas as vezes em que estava parada em uma esquina tentando entrar em um mapa e alguém freou a bicicleta, a caminhada ou atrasou o compromisso para tentar me ajudar. Não foi preciso pedir. Eles simplesmente invadiram, solidários. "Onde você está tentando chegar?" "Lá, você me mostra o caminho?"
E não precisei mais de 60 dias de estrada para entender que esta viagem veio para me fazer voltar a acreditar na veracidade do ser humano. Aliás, foi necessário bem menos que isso. Mas a conclusão chegou por agora. Se eu revisitar meus últimos textos, só vou enxergar gente. Meu caminho está sendo construído por encontros, não por lugares. Que coisa! Justo eu, que decidi que viajaria sozinha em busca de uma certa independência. A Itália foi um capítulo definitivo para que eu, enfim, visualizasse que depender é legal, que pode ser grandioso. Primeiro, vieram a Camila e o Pedro, que além de me oferecem o sofá de casa, não economizaram esforços para me apresentar Milão e matar minha saudade do Brasil, com feijão e chimarrão. Depois, surgiu a Dora. Gaúcha de Porto Alegre, ela me acompanhava pelas redes sociais e mandou uma mensagem oferecendo hospedagem em sua casa na Costa Amalfitana. Sim, simples assim.
Não, a Dora não mora em Sorrento. Ela confiou. O caseiro entregou a chave na minha mão, explicou como tudo funcionava e deixou o pomar repleto de limões sicilianos, cerejas e bergamotas ao nosso dispor – já aproveitei para levar a Camila comigo. Por cinco dias, acordei no topo da cidade, com o canto dos passarinhos e dos galos, o perfume do roseiral e a vista panorâmica da região. Ela e o marido, Gianluca, não economizaram nas dicas diárias e nos desejos de uma boa estadia. Ah, e completando o time, uma das grandes amigas da Dora na Costa, a Fernanda (xará), fez questão de deixar biscoitos de amêndoas à porta de casa só para agradar e desejar boas-vindas. E o que eu fiz para merecer isto? Nada. Exatamente nada.
Passei a temporada circulando por uma das regiões mais encantadoras do planeta porque alguém confia na humanidade e decidiu ser legal comigo. Aliás, ganhei 10 dias na Itália por gentileza. Pessoas que eu nem sequer tinha o número de telefone ou e-mail, com que nunca havia saído para tomar um café, mas que resolveram me dar um puxão de orelha com afago na cabeça: "ah, chega aí, machona, deixa eu te dar um abraço".
Fui enlaçada da maneira mais sincera possível – recebendo cama, banho e comida quente – por desconhecidos. Aquele tabefe suave para realizar a existência de relações sem segundas intenções. Por uns bons anos, em função da minha posição de influência na mídia, fiquei completamente perdida entre mimos, elogios e cortesias. Envolta em dúvidas sobre a genuinidade de todo aquele confete e serpentina.
Será que é realmente por mim? Será que é o que eu represento? Será que é o que posso oferecer? Tem essência aqui?
Quando abdiquei do status que me competia – logo após adoecer com o peso dos pontos de interrogação na cabeça –, brincava que estava passando por uma espécie de detox de relacionamentos. Tipo aquele desejo interno e secreto que vez ou outra bate na gente de morrer bem rapidinho só para ver quem choraria de verdade no seu enterro.
Frouxar minhas raízes, pendurar o guarda-roupa nas costas e sair em uma imersão individual para onde ninguém sabe quem eu fui, sou ou me tornarei também foi parte do processo de desintoxicação de qualquer fagulha falsa que ainda pudesse estar me queimando. Que baita decisão. A neblina baixou e o sol nasceu rachando. Agora, quando o finlandês do hostel me passa um e-mail com as melhores dicas da Europa, quando a marroquina tira o fone de ouvido na hora do rush e se oferece para me levar até o endereço que eu não estava conseguindo chegar e o italiano da Costa pega sua Vespa e nos mostra a direção, mesmo que seja contrária à que ele estava indo, eu acredito que vem de dentro.
E ao surgirem Gabrieles, Igors, Claudines, Ricardos, Brunas, Mayas, Karens, Marianas, Saulos, Camilas, Pedros, Doras e Gianlucas no caminho, consigo identificar que é para mim. Mesmo, mesmo. De coração. De bom grado. De disponibilidade. E essa certeza é tão leve. Não à toa tem um trecho da música Trem-bala que vem rodando em looping na minha cabeça. É este: "Não é sobre ter todas as pessoas do mundo para si, é sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti...".
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