Das mesas do restaurante idealizado por Henrique se vê a maior preciosidade de Itapuã: o Guaíba ainda limpo, preservado e cheio de belezas.
*Fotos: Julio Cordeiro
Depois de mais ou menos 50 minutos de viagem, o carro da reportagem de Donna chega a uma simpática vila, bem pequeninha e de ares interioranos, em busca de um personagem. De posse do endereço, repórter, fotógrafo e motorista cravam os olhos nas placas e indicações de rua. Sem sucesso, lançamos mão da velha tática: parar e pedir informação.
- Bom dia, moça. A senhora sabe onde fica a rua tal?
- Hum... não sei não. Mas a gente não conhece muito nome de rua aqui. É mais fácil vocês me dizerem quem estão procurando.
E, ao dizer o nome da pessoa a quem procurávamos, a localização precisa veio em segundos. Com uma descrição detalhada da frente da casa, para que não houvesse dúvida.
- E manda um abraço pra ele! Tchau moça, tudo de bom!
:: VÍDEO: um passeio por Itapuã
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A situação, que parece retirada de uma novela de época, ocorreu há poucos dias, bem pertinho de Porto Alegre. Este lugar meio encantado, meio escondido, é o bairro de Itapuã, distante cerca de 50 quilômetros do centro da Capital. Muita gente, claro, já conhece as belezas e a paz que se experimenta por lá. O que ainda é novidade são as iniciativas que estão mudando o conceito da localidade: antes procurada quase que exclusivamente pelos bichos grilos que desejavam desfrutar da natureza em seu estado bruto, Itapuã começa a se tornar um destino igualmente atraente para quem quer curtir um dia de sol com boa comida, música, lazer, esportes e a vista mais espetacular que se pode ter de um velho conhecido dos gaúchos, o Guaíba.
Uma figura em especial representa este novo momento do bairro. Nascido por lá mas criado no mundo, com anos vividos na Alemanha e em São Paulo, o publicitário Henrique Möller decidiu retornar à propriedade da família, onde repousam as melhores lembranças da sua infância, para transformar a memória em algo diferente. Idealizou assim o restaurante O Butiá, localizado em uma paisagem inacreditável, no topo de um morro, na beira do Guaíba.
Designer e diretor de arte, Henrique correu o mundo trabalhando e conhecendo lugares. E nunca havia pensado em trocar de carreira até que, sem muita explicação, sentiu uma necessidade visceral de retomar sua origem e mudar de vida. Já morando em Porto Alegre, depois de uma temporada de mais de 10 anos em São Paulo, decidiu empregar as economias, a energia e as esperanças em um negócio sem precedentes no lugarejo. Aos 43 anos, virou a chave e começou tudo de novo.
- Foi muito difícil. Ainda é. É tudo novo, entende? Estou desbravando um terreno desconhecido, apostando em algo incerto. Acredito em Itapuã com muita convicção, mas ainda há um caminho longo pela frente - comenta.
Caminho este que Henrique não percorrerá sozinho. Assim que se mudou para a casa onde mora hoje, cerca de quatro quilômetros depois da Vila, tratou de se apresentar aos moradores próximos e integrar-se com eles. Conheceu, assim, outras pessoas que também acreditam no potencial turístico do local e decidiram investir em iniciativas diversas, voltadas ou não para o público, tudo para viver de maneira diferente, perto da natureza, ajudando a desenvolver o lugar que escolheram como lar.
A aproximação com os vizinhos rendeu um fruto de grande valor. Por intermédio de um deles, conheceu a veterinária Desirée Hastenpflug. Apaixonou-se imediatamente pelos olhos azuis da moça e uma história de amor teve início.
- No primeiro beijo, já sabia que queria casar com ela.
Hoje, o casal toca o negócio que oferece um serviço exclusivo para quem quer viver uma experiência diferente, que já começa no momento da reserva. Pelo site, o futuro comensal só recebe o mapa de localização e a senha do portão eletrônico que dá acesso ao restaurante depois de confirmar a presença. Além da gastronomia qualificada, que inclui um menu especial a cada fim de semana e o serviço de hambúrgueres gourmet durante as tardes, o visitante também desfruta de apresentações de jazz, stand up paddle e banhos de rio. Destaque para a novidade que faz transbordar o entusiasmo dos dois: um barco recém adquirido proporciona aos clientes um passeio impressionante por praias desconhecidas do Guaíba, como a das Pombas, do Tigre e do Sítio - esta última próxima ao Farol de Itapuã, ao lado da Lagoa dos Patos. Na volta dos passeios, a cadela Francis, uma labradora gorducha que caminhou ao lado de Desirée para o altar no dia do casamento, recebe todo mundo com felizes acenos de rabo e pulinhos. Como boa nativa de Itapuã, ela sabe que, mesmo vivendo um novo momento, este recanto tem uma essência que vai demorar muito para mudar.
Tão longe, tão perto
Das sementes aos sabores
Todo mundo sabe que as hortaliças que consumimos precisam ser semeadas, germinadas, cultivadas e, só então, colhidas. O que pouca gente sabe é o potencial de produtos que as sementes podem originar. Para aproximar o público desse universo, a fábrica de sementes Isla recebe grupos de visitantes em sua estação experimental, em Itapuã. Ao longo de 1,5 hectare, os técnicos cultivam as mais diversas espécies de legumes e hortaliças - para se ter uma noção, há 50 tipos de tomate, 30 espécies de pimenta e mais de 20 variedades de pimentão.
Para aproximar ainda mais esse universo de quem gosta de cozinhar e de comer, a empresa promove, de tempos em tempos, o evento Colheita dos Chefs, que reúne cozinheiros, donos de restaurantes e críticos de gastronomia para viver uma tarde de campo. Eles caminham pelos canteiros e colhem as hortaliças e, depois, um chef prepara um jantar especial para os convidados. Os eventos ainda são fechados, mas qualquer um pode se deliciar no universo dos tomates, pimentões e temperos. A diretora-presidente da Isla, Diana Werner, explica que a visitação à estação é aberta e o público pode contar com a ajuda do guia especializado. Basta agendar pelo site www.isla.com.br
Vai uma cachacinha?
Nem tudo o que é bom, em Itapuã, é novo. Há 18 anos, um local mora no coração de quem frequenta as praias e recantos da localidade. O Alambique Fraga surgiu como alternativa para a família que vivia da renda de um tambo de leite. Para tirar uns trocados a mais, abriram as portas para servir refeições a quem ia acampar na Varzinha. Junto com a comidinha caseira, as cachaças feitas pela matriarca da família iam ganhando fama. Banana-do-mato, butiá, abacaxi e guaco são as mais pedidas pela freguesia, que sempre degusta um martelinho antes de levar a garrafa cheia para a casa.
- Descobrimos a vocação para lidar com o público, que chega em número cada vez maior. Acho que o povo gosta da gente, porque atendemos mais de 200 pessoas a cada fim de semana! - exclama o proprietário, Antônio Fraga, de 41 anos.
Aos sábados, o Alambique serve filé de bagre pescado no Guaíba, fritinho. Aos domingos, o peixe ganha a companhia do churrasco no menu. E nem precisa reservar. É só chegar na Estrada da Varzinha, 14.
Futuro azeite de Itapuã
Ele só queria um investimento promissor. Mas acabou se apaixonando perdidamente pela terra que, pouco tempo antes de comprar, mal conhecia. Foi assim, num repente, que Itapuã entrou na vida do empresário Francisco Hauck, 35 anos. Depois de adquirir 26 hectares de terra como investimento, decidiu - após muito estudo pela internet - apostar na produção de azeitonas para a produção de azeite de oliva. Em abril, as primeiras 1,3 mil mudinhas foram plantadas no chão que tornou-se a grande aposta de Hauck. Em parceria com a marca Olivas do Sul, ele espera extrair, em cinco ou sete anos, um azeite extravirgem de grande qualidade do solo de Itapuã.
- Acredito em negócios que preservem o que esse lugar tem de mais precioso, que é a biodiversidade. O cultivo de oliveiras tem baixo impacto ambiental e pode ser bem sucedido por aqui - sentencia.
Assim que o negócio tomar forma, a ideia é desenvolver o ecoturismo na propriedade, para atrair o público interessado em curtir a natureza e também conhecer a milenar cultura de azeitonas.
Dividindo-se na administração da propriedade e nos afazeres profissionais rotineiros, Hauck ainda não sentiu a necessidade de morar no local em tempo integral. Mas preza os momentos em que pode estar ali, entre o pomar e o Guaíba.
- Este é o lugar mais perto que consegui para me sentir longe. É encantador estar aqui.
Queijadas celestiais da Dona Iracema
Elas costumam chegar à boca ainda morninhas. Primeiro, vem a leve crocância da massa. Depois, o gosto do coco e das gemas doces invade o paladar. A esta altura, nada mais passa pela cabeça, a não ser o sabor daquela iguaria simples, mas inacreditavelmente deliciosa. Essas são as queijadinhas da Dona Iracema de Melo, uma doceira de 67 anos que é um dos símbolos de Itapuã. Ela mora um pouco em Porto Alegre, outro pouco em um trailer instalado ao lado da praça da Igreja, na Vila. Faz as queijadas que aprendeu com a avó por encomenda ou durante as festas de Navegantes e do Peixe, as duas únicas ocasiões em que se pode comprar o doce de forma avulsa.
- Adoro fazer vários tipos de doces, mas as queijadas são especiais. Minha vó e minha mãe me proibiram de dar a receita. Elas sabiam que era uma coisa especial. Mas acho que elas ficam boas mesmo é por que eu faço com muito amor.
Santuário de preservação
Era uma vez uma região pouco habitada, rica em biodiversidade e em cujo solo era abundante uma pedra muito rara, o granito rosa. A riqueza que tornava a terra de Itapuã valiosa é a mesma que, perversamente, também a empobreceu. Nas décadas de 1950 e 1960, o granito rosa foi amplamente explorado, atraindo para Itapuã uma população numerosa e causando a derrubada das florestas que cobriam os morros, para a atividade das pedreiras.
Antes que a degradação fosse irreversível, um movimento envolvendo ambientalistas e diversos setores da sociedade viabilizou a criação, em 1973, do Parque Estadual de Itapuã. Não sem polêmica, uma vasta área foi desapropriada e protegida, para que o ecossistema pudesse se recuperar. E foi o que aconteceu. Hoje, o Parque detém a porção final da cobertura de Mata Atlântica no Brasil - abaixo, no mapa, já começam as Florestas de Restinga e o Pampa - e abriga uma rica biodiversidade. O animal símbolo da Unidade de Conservação é o bugio vermelho, que pode ser visto e ouvido com facilidade dentro do parque e em qualquer outra parte de Itapuã onde haja árvores. Exibidos, é fácil tirar fotos deles em bandos, pendurados nos galhos.
Para garantir a conservação do ecossistema, muitas partes do parque são fechadas e não recebem visitantes. A Praia das Pombas, única aberta ao público dentro da unidade, recebe somente 350 pessoas por dia. De quarta a domingo, das 9h às 18h, é possível aproveitar um intenso contato com a natureza, fazendo trilhas ou tomando banho nas águas puras do rio, e ainda aprender mais sobre a nossa ecologia, no Centro de Visitantes. O ingresso custa R$ 5,75 por pessoa, preço estipulado pela legislação estadual que determina as normas do parque. Para os que chegam cedo, há até churrasqueiras disponíveis. Mas atenção: leve carvão e tudo o que for comer. E aproveite um dia inesquecível.
O melhor de dois mundos
- Muita gente me chama de louco, mas eu nunca fui tão feliz com uma escolha. Eu já trabalhava no que eu gosto. Faltava só morar no lugar dos sonhos. E esse lugar era Itapuã.
A declaração rasgada de amor é do consultor e palestrante Márcio Mancio, que há nove anos toca seu negócio a partir de uma casa na beira do Guaíba, na Vila de Itapuã. Porto-alegrense com raízes familiares na região, sonhava em operar o êxodo rural ao contrário, deixando o centro da Capital para viver retirado. Quando a atividade se estabilizou e ele ganhou a confiança de grandes clientes, percebeu que poderia aventurar-se no campo. Faltava, então, convencer a mulher a embarcar junto.
- Tentei de tudo, mas ela não topava. Até que, numa noite, ela viu os vagalumes iluminando a beira do rio. Foi o argumento decisivo.
Hoje, Márcio troca as bananas que cultiva em seu terreno pelas alfaces orgânicas que o vizinho produz. Também sabe das fofocas da Vila, compra peixe fresco pertinho de casa e conhece a família do único taxista da localidade. E, sem prejuízo de tudo isso, desenvolve palestras e cursos a serem aplicados em grandes empresas de todo o país.
Entusiasta de Itapuã, é um dos forasteiros que aposta no potencial do lugar. Por isso, em acordo com alguns vizinhos, como Henrique Möller, do restaurante O Butiá, direciona todos os eventos que pode para os empreendimentos da região.
- Para quem fizer evento por aqui dou até desconto. É o nosso jeito de contribuir para o desenvolvimento sustentável desse lugar maravilhoso.
Cidade (quase) fantasma
No final da linha do ônibus, já longe da Vila e de quase tudo o mais, um lugar quase invisível insiste em existir. Chamado de leprosário nas conversas informais, o Hospital Colônia de Itapuã guarda uma história comovente e assustadora. Fundado em 1940 para abrigar os portadores de lepra, doença até então sem perspectiva de cura, o hospital é, na verdade, uma cidade. Composto por cerca de 170 prédios, o complexo tinha casas, igrejas, escola, cinema, salão de eventos e mercado. Tinha até moeda própria, com circulação restrita à colônia. Os doentes, recolhidos em todos os cantos do estado, eram levados para lá e obrigados a ficar, para reduzir a contaminação. Separados à força de suas famílias, reconstruiam ali os laços rompidos pela tragédia. De vez em quando ocorria um casamento entre os internos, motivo de festa para toda a comunidade. Os filhos que resultaram dessas uniões, no entanto, eram separados das mães no nascimento e entregues a abrigos, para evitar a disseminação da doença. Era uma realidade paralela, muito real para as mil pessoas que chegaram a morar lá.
Os medicamentos eficientes contra o Mal de Hansen se popularizaram nos anos 1970, o que fez com que muita gente deixasse as colônias. Muitos, no entanto, já bastante desfigurados pelos anos de convívio com a lepra não foram aceitos em suas famílias e não conseguiram se reintegrar à sociedade. E voltaram para a Colônia, onde permaneceram para o resto da vida. Hoje, a maior parte da comunidade que viveu no Leprosário de Itapuã já morreu. Alguns poucos, menos de 30, ainda estão lá. Ganham um auxílio do governo e têm o direito de permanecer na estrutura do Hospital-Cidade enquanto viverem. Alguns prédios, há décadas sem manutenção, estão quase caindo. A ruína do projeto de segregação dos leprosos é resultado de uma das mais notáveis vitórias da medicina, que erradicou a chaga que, desde os tempos bíblicos, castigava a humanidade. Mesmo assim, é comum encontrar quem não goste muito de passar por aquele canto escondido, quase invisível, de Itapuã.