Amor pelo papel e pelos lápis de cor fazem parte da vida da maioria das crianças. Bem diferente do que aconteceu com as meninas desta reportagem. A atração pelos traços e o processo de erro e acerto para transformar grafite e cor em arte é o que une Cris Peter, 28 anos, Ana Luiza Kohler, 34 anos, e Larissa Casagrande, 29 anos. As gaúchas, assim como a argentina Julieta Arroquy, de 36 anos, não são necessariamente quadrinistas, mas todas fizeram do desenho parte da profissão.
O mercado de quadrinhos tradicional (tanto produtor quanto consumidor) é historicamente dominado pelos homens - diferentemente dos mangás (os HQs japoneses), que por sua ênfase maior nos dramas emocionais dos personagens já conseguiram atrair mais leitoras. No passado, era comum até ter mulheres publicando com pseudônimos masculinos. Graças à internet, nada disso é necessário para difundir o trabalho.
- Online "ninguém tem rosto", a primeira coisa que salta aos olhos é a qualidade do que se faz, e não o sexo do seu autor. Por isso, acho que o mercado hoje é bem democrático nesse sentido - explica Cris, que colore revistas para editoras como Marvel e DC Comics.
Durante o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), um dos maiores eventos brasileiros do gênero, que ocorreu em Belo Horizonte em novembro de 2011, um painel discutiu a "raridade" de mulheres efetivamente nas grandes editoras de HQs. Elas ainda são menor número, mas o talento, a sensibilidade e o humor gráfico feminino têm transformado a vida de apaixonadas pela arte de desenhar. Para Julieta, que já tem um livro lançado e publica em jornais e revistas da Argentina e do México, o segredo do sucesso é simples:
- Desenho o que eu gostaria de ler, por isso que funciona. A gente acaba sempre colocando muito do que sente nos trabalhos. Assim. as pessoas se identificam mais do que com algo meramente ilustrativo - conta
Larissa investe na carreira de Tatuadora
Foto: TADEU VILANI
A expressão dos mangás
Os olhos expressivos dos desenhos de mangás japoneses (tipo de quadrinhos com leitura da direita para a esquerda e com destaque das emoções no rosto dos personagens) sempre fascinaram Larissa Casagrande. Ela começou a desenhar ainda criança e nunca largou o lápis. Hoje, aos 29 anos, suspira e fala devagar ao contar que o sonho de ser quadrinista acabou deixando de ser apenas um hobby para dar lugar a outra atividade.
Desencorajada pelo comentário de um professor sobre o mercado no Brasil, Larissa não abandonou os traços fortes dos desenhos japoneses, mas acabou migrando para outro ramo, mais promissor e também predominantemente masculino: ela investe na carreira de tatuadora.
Larissa coleciona uma enorme quantidade de trabalhos e personagens criados. Em seus desenhos, sempre preferiu dar ênfase para as relações entre os personagens, mais do que para a ação _ como acontece nos bons mangás. Para Larissa, essa identificação emocional é fundamental para a profissão que exerce hoje.
- Parece bobagem, mas muito mais do que desenhar bem, é necessário uma empatia entre o tatuador e o cliente, ou o trabalho não vai ficar bom. Além disso, o clima influencia. Quando se está num dia ruim, os traços não têm a mesma qualidade. É impressionante - comenta.
Ana Luiza desenha para o mercado francobelga
Foto: TADEU VILANI
Porta aberta na internet
Os desenhos de Ana Luiza Koehler, 34 anos, ilustram principalmente publicações francesas e belgas. Formada em Arquitetura e Urbanismo
pela UFRGS, Ana tem a ilustração como atividade principal desde os 16 anos. Um de seus primeiros grandes trabalhos foi ilustrar os livros infantis do método de ensino alemão Wie Geht's, da editora Freitag Publishing. Assim, as portas no Exterior se abriram pela internet.
_ Uma editora viu meus desenhos em um site francês e comecei a trabalhar com o mercado francobelga. Nunca mais parei. Às vezes, até recuso alguns trabalhos aqui porque nem sempre o que pagam vale _ observa.
A arquiteta de formação assinou as ilustrações do díptico Awrah, tomos 1 e 2, da Éditions Daniel Maghen, em 2010. De seu ateliê em casa, segue dando vida aos roteiros de editoras europeias e também já fez trabalhos para a DC Comics. Ana trabalha ainda com ilustrações científicas de arqueologia e história.
Ela garante que, com a internet, fazer sucesso no mundo dos quadrinhos ficou mais simples. Um diferencial é saber como atrair o público feminino:
_ Tem que fazer algo que a gente mesma queira ler, algo que corresponda à nossa sensibilidade e não se limite a repetir fórmulas já prontas _ ensina.
Cris colore para Marvel e DC Comics
Foto: TADEU VILANI
Todas as cores de Cris
Atualmente, Cris Peter, de 29 anos, rabisca só para não perder o costume. Formada em Publicidade e Propaganda pela PUC-RS, ela largou os desenhos para estudar pintura digital e teoria das cores, mas não abandonou os quadrinhos. Cris trabalha como colorista (técnica usada para colorir detalhando as linhas para destacar personagens/ objetos importantes e mostrar mudanças de ambiente) e presta serviço para grandes editoras americanas de gibis como a Marvel e a DC Comics.
Tudo começou com um curso de desenho para HQs aos 15 anos para ajudar a transformar o hobby em habilidade. Mais tarde, já na faculdade, ela se especializou em cor e, depois de muito correr atrás, dois amigos que trabalhavam para a Marvel a convidaram para fazer três edições para a revista Daken - Dark Wolverine (HQ protagonizada pelo filho de Wolverine, dos X-Men).
Depois dos volumes finalizados, a porto-alegrense foi ficando na editora e trabalha com eles até hoje. Cris é responsável pelas cores de publicações como Casanova e Manhatan Projects. Ganha a vida com os quadrinhos e prioriza atender o mercado externo:
_ Aqui nem sempre valorizam muito o trabalho. É comum encontrar quem ache que pode pagar qualquer preço porque é só "um desenhinho" _ lamenta.
Além disso, a proximidade das grandes editoras do ramo permite diversificar a atuação _ neste semestre, Cris deve começar a dar aulas de colorização
digital em uma faculdade da Capital e também sonha com voos mais altos:
- Como sempre sofri influência de desenhos animados e quadrinhos, é quase que uma consequência ter um projeto próprio na manga. Tenho várias histórias e personagens na minha cabeça. Minha pretensão é escrever esses projetos e apresentar para os editores. Se tudo der certo, um dia terei um título de minha autoria nas bancas - planeja.
Julieta viu seus desenhos ficarem famosos em um blog
Foto: ARQUIVO PESSOAL
Desenhista da alma feminina
Foi um coração partido por um relacionamento mal resolvido que fez a argentina Julieta Arroquy, 36 anos, pegar o lápis e o papel há cinco anos. Ela começou publicando tirinhas únicas com desenhos de objetos, que pudessem ajudar a exorcizar os sentimentos ruins. A "terapia" acabou virando blog em 2008 (www.julietaarroquy.blogspot.com) e, mais tarde, os trabalhos foram reunidos no livro Oh, no! Me Enamore. No início de 2011, em uma sessão de autógrafos da publicação, nasceu a personagem Ofelia, uma dramática menina de vestido vermelho, que colocou Julieta oficialmente na categoria de "mulher dos quadrinhos" .
- Por ser uma mulher que fala, Ofelia me permite muitas coisas que os outros desenhos não permitiam. Vejo que as pessoas se identificam especialmente porque as mulheres gostam de sofrer como se vivessem em um filme cheio de momentos tristes com trilha sonora do Coldplay. A Ofelia me mostra que rir de si próprio é o que salva vidas - afirma.
O humor das tiras de Julieta ganhou espaço fixo no jornal de Buenos Aires Diario Libre de Perfil e, a partir de fevereiro, estará também na revista mexicana Mujer Es. Com o trabalho como quadrinista, a argentina, que nunca terminou a faculdade de jornalismo e antes já tinha trabalhado em agências de comunicação e bancos, agora atua tranquilamente no conforto de casa. Além das tirinhas, ela também lançou uma coleção de sapatilhas e bolsas com seus desenhos.