A gagueira do ex-BBB Diogo e de George VI, vivido pelo ator Colin Firth no premiado O Discurso do Rei, colocou o problema em pauta. O distúrbio de fluência ? que afeta cerca de 1% da população mundial ? não tem cura, mas pode ser superado com tratamento.
Quem assistiu ao filme viu o personagem do monarca britânico George VI disfarçando a aflição diante do microfone, aterrorizado pelo receio de tropicar nas palavras e comprometer discursos decisivos à história. Os telespectadores podem ter saído da sala de cinema convicto de que a gagueira é um problema de saúde.
A percepção é correta. Ainda assim, grandes líderes, como Moisés e o próprio George VI, foram gagos ? e isso não impediu que mudassem os rumos da humanidade. O tratamento melhora a fluência e quase elimina os indesejados travamentos da fala.
Uma das que se empenha em inserir a gagueira na agenda da saúde pública é a diretora educacional do Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), fonoaudióloga Anelise Junqueira Bohnen, de Porto Alegre. A especialista diz que é preciso romper "os preconceitos e a ignorância" em torno de um distúrbio que tem causas no cérebro.
? Achavam que fosse emocional. Atualmente, sabe-se que a gagueira é o resultado de falhas no sequenciamento da fala em regiões bem definidas do hemisfério esquerdo do cérebro ? ressalta Anelise, mestre em Fonoaudiologia pelo Ithaca College (EUA).
Emocional
A fonoaudióloga diz que o estado emocional (nervosismo, raiva, tensão) apenas exacerba a gagueira já existente. Especializada no tema pela Fundação Americana de Gagueira e Northwestern University, Anelise informa que cientistas já provaram o envolvimento de genes no distúrbio da fala. Também está confirmado que dois terços dos pacientes têm algum antepassado gago.
Numa tese de doutorado para o curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Anelise investigou 60 crianças e 60 adultos com gagueira, entre 1986 e 2005. Num total de 12 mil palavras pronunciadas, houve trancamentos em 1.326 delas. Em 97% das vezes, as gagueiras localizaram-se nas primeiras sílabas das palavras. Outra conclusão interessante: 48% dos tropeços ocorreram em monossílabos, especialmente em preposições e conjunções.
Tratamento
Apesar de não ter cura, o problema pode ser controlado, especialmente se o tratamento começar na infância. A criança tem de 98% a 100% de chances de sair da gagueira se o tratamento for o mais próximo possível do surgimento das rupturas. Já nos adultos, a fluência pode ficar muito boa, mas ainda não se oferece cura.
Em O Discurso do Rei, o ator Colin Firth, na pele de George VI, dispunha dos recursos da época ? alguns obsoletos. Atualmente, a fonoaudiologia avançou nos seus métodos.
? Uma criança que gagueje hoje, no século 21, pode não se tornar um adulto com gagueira ? diz Anelise, autora do livro Sobre a Gagueira.
Técnicas nada ortodoxa
Sua majestade real britânica tentava aperfeiçoar a fluência introduzindo bolas de gude na boca ou rolando no chão. A fonoaudióloga Clara Rocha, formada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), observa que esses exercícios não são mais utilizados, por serem ineficazes. Fonoaudióloga responsável pela Divisão de Aparelhos para Fluência no Grupo Microsom, de São Paulo, Clara destaca que há soluções para tipos de gagueira, como o aparelho auditivo SpeechEasy.
Crendices e simpatias também foram tiradas do repertório de cura. Não adianta bater num gago com uma colher de pau virgem, sem que ele note, na esperança de que o susto eliminará o distúrbio. No cinema ou na vida real, a gagueira é assunto para a ciência.
O empresário ás na negociação
Não apenas George VI, o rei da Grã-Bretanha, precisou superar os embaraços da gagueira. Felipe Potthoff Silva, 23 anos, de Porto Alegre, buscou tratamento para ter mais fluência durante as reuniões com empresários. É responsável por vendas de franquias no ramo de joias de prata.
O problema manifestou-se por volta dos três anos de idade, acentuando-se na adolescência. O pai acreditava que a causa era um trauma, pois Silva estava numa lancha que explodiu durante passeio em Santa Catarina, quando tinha sete anos. Enganou-se.
O empresário procurou ajuda de uma fonoaudióloga aos 12 anos, pois não conseguia aceitar a gagueira. Não tinha dificuldades de se relacionar com os colegas, mas incomodava-se com as travadas ao falar. Desistiu do tratamento, mas voltou aos 18 anos, quando abriu a empresa de joias com familiares.
Desde então, duas vezes por semana, faz tratamento em grupo com outros que procuram destravar a língua ? um dos participantes trabalha em call center. Silva aprendeu a se comunicar mais lentamente, de forma concentrada. Acredita que conquistou um nível de 96% de fluência nas palavras.
? Aceitar a gagueira é o primeiro passo para a superação ? destaca.
Hoje, quando se senta à mesa de negociação com outros empresários, Silva anuncia logo nas apresentações:
? Olhem, sou gago, vou dar umas trancadas, mas é assim mesmo.
A sinceridade causa duplo efeito. Primeiro, atrai simpatia e cumplicidade. Depois, afasta a suspeita de que Felipe possa estar inseguro ? há quem interprete o distúrbio como vacilação e nervosismo.
O rato não roeu a roupa do menino
O estudante de 10 anos fica diante da fonoaudióloga Arlete Barth, no consultório de Porto Alegre, e repete o divertido trava-línguas que ajuda a melhorar a dicção, a leitura e a fala. A frase flui sem nenhum indício de gagueira:
? O rato roeu a roupa do rei de Roma.
O menino mostrou sinais de gagueira aos três anos de idade, e seus pais logo buscaram tratamento, o que é recomendado por especialistas. Quanto mais cedo o diagnóstico, melhor o resultado. No momento, ele alcançou 98% de fluência, e interlocutores não percebem que tem o distúrbio.
? Quando vou ler um texto em aula, não leio rápido ? conta o garoto, que aprendeu os macetes para se expressar sem tropeçar nas palavras.
Especialista em voz e motricidade orofacial, Arlete observa que, na maioria das crianças, a gagueira melhora espontaneamente em até um ano após o aparecimento dos sintomas. Como os pais não têm como saber antecipadamente as chances de ocorrer a recuperação natural, é recomendável procurar um fonoaudiólogo. Serão avaliados fatores de risco, como ser do sexo masculino, ter familiares com gagueira, complicações durante o parto, traumatismo craniano com perda temporária da consciência, entre outros.
? Se o risco for baixo, de modo geral o acompanhamento é mensal, para observar se está ocorrendo a recuperação espontânea. Já se o risco for alto, o tratamento deve ser iniciado imediatamente ? diz a fonoaudióloga.
Arlete confirma que, até o momento, não existe cura para a gagueira. No entanto, os tratamentos proporcionam uma diminuição significativa nos travamentos, persistindo alguns resquícios, mesmo que raros e sutis.
? É preciso dizer que a fluência é como andar, dirigir, concentrar-se, fazer cálculos, ou seja, é uma habilidade de domínio da linguagem. Requer tempo, vai depender de cada pessoa ? esclarece.
"O microfone é minha bengala"
Adotando táticas próprias, Cláudio Roberto Pires Duarte, o Claudião, 59 anos, domou a gagueira que o acometia desde criança. Bicampeão brasileiro pelo Internacional, ex-treinador da dupla Grenal e de vários times do país e da Arábia Saudita, Claudião também se desempenha como comentarista esportivo e palestrante motivacional. Confira o depoimento:
"Nunca fugi das dificuldades que tive. Quando me concentro e falo oficialmente, não há travamentos. Recebo e-mails e telefonemas de pais que têm filhos com esse problema. Perguntam com quem me tratei. Acontece que nunca me tratei com ninguém. Sou autoditata. Tomei consciência da dificuldades, me informei, treino duas ou três vezes por semana com métodos próprios. Um deles: troco de timbre, falo com a voz mais grave. Virei craque em sinônimos. Se noto que vou trancar numa palavra, escolho outra rápido. Mas tem que saber o sinônimo antes.
Botei na cabeça que a gagueira é uma das tantas dificuldades da vida que precisava superar, e não foi a mais complicada. Como jogador, precisava dar entrevistas depois dos jogos. Como presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais, precisava me manifestar por eles. Quando virei treinador, era preleção todo dia e entrevistas à imprensa. Então me conscientizei: 'Vou conseguir que irão me escutar sem notar a dificuldade'.
Há pessoas que discursam fluentes na frente de 50, cem pessoas, mas engasgam diante do microfone. Decidi que deveria perder o medo de microfones de rádios e TVs. Ele passou a ser a minha bengala. De inimigo potencial, o maior alicerce. Toda vez que me derem um microfone, vai simbolizar que tenho de falar bem. Trouxe ele para o meu lado. Como? Fiz instintivamente, até que desse certo.
Sempre digo aos amigos. Ser gago é que nem ser alcoólatra. Nunca vai deixar de ser, não pode se descuidar, o prejuízo está logo ali na frente. Tem de se cuidar sempre. Com a família, tranco e não estou nem aí. Em situação profissional, inclusive como palestrante motivacional, embalo e vou embora."
O que fazer?
? Aceitar a gagueira, parar de brigar contra a própria boca
? Falar olhando nos olhos do interlocutor
? Escolher frases simples, palavras simples
? Exercícios de relaxamento de boca, língua, mandíbula, garganta e diafragma
? Exercícios de relaxamento do corpo
? Exercícios de suavização, para desfazer a tensão de estruturas envolvidas na fala
Equipamentos que auxiliam
:: SpeechEasy
É um aparelho colocado no ouvido. A pessoa escuta a própria voz em outro tom (mais fino ou grosso) e com um leve atraso (efeito coro). Isso faz com que o cérebro pense que a pessoa está falando em uníssono com outra. Custa em torno de R$ 10 mil.
:: Fluency Tracker
Aplicativo para iPad e iPhone que mapeia as situações relacionadas à gagueira, permitindo que a pessoa use técnicas aprendidas com o fonoaudiólogo.
Fonte: fonoaudiólogas Anelise Junqueira Bohnen e Instituto Brasileiro de Fluência (IBF).