: Neidinha ( Elina de Souza ), Alice ( Erika Januzza ), Virgílio ( Humberto Martins ) e Luiza ( Bruna Marquezine ) na novela Em Família. Foto: TV Globo/Divulgação Érika Januza e ator Caio Paduan na novela O Outro Lado do Paraíso. Foto: Instagram , Reprodução Conceição (Erika Januza) e Cleiton (Fabrício Boliveira) em Subúrbia. Foto: TV Globo/Divulgação Érika Januza e a juíza aposentada Ivone Ferreira Caetano, inspiração para a personagem Raquel Custódio em O Outro Lado do Paraíso. Foto: Reprodução, Instagram
Caue Fonseca
Quando era adolescente, a mineira Erika Januza desejava ser modelo. Mas, beirando os 27 anos, já estava bastante calejada por inúmeros concursos de beleza e por testes que, ou não davam em nada, ou se revelavam uma armadilha para extorquir meninas ingênuas e sonhadoras.
Levava uma vida pacata como auxiliar de serviços administrativos em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, quando se inscreveu despretensiosamente em uma seleção para uma suposta campanha publicitária. Participava, sem saber, de uma seleção de elenco para um seriado da Globo.
– Acho que era para ser, acredito muito nisso. Porque houve tantos outros testes bem mais simples, para modelo, que eu não consegui passar. E, nesse, que exigia tanto além, eu fui escolhida – lembra a (desde então) atriz.
Subúrbia, que foi ao ar em 2012, buscou propositalmente não atores para os papéis principais. E Erika foi logo a protagonista, Conceição – não à toa uma imigrante mineira na periferia do Rio. Quem a assistiu balançando os cachos no seriado ou depois, em 2014, como uma jovem que descobre ser filha de um estupro na novela Em Família, também não desconfia que o início da carreira de atriz também significou o fim de uma cabeleira lisa até a cintura.
Em O Outro Lado do Paraíso, Erika vive o papel mais importante da sua carreira. Raquel Custódio é uma quilombola que retorna ao Tocantins como juíza, para surpresa e desgosto da ex-patroa preconceituosa que a demitira por namorar seu filho, amor que o casal nunca deixou morrer. Preconceito, racismo, amor e representatividade, temas que o personagem de Erika levou ao horário nobre, foram também os principais assuntos no bate-papo com Donna.
Como foi a sua preparação para viver as situações que a Raquel enfrenta em O Outro Lado do Paraíso. Houve situações reais que acabaram na novela?
Quando eu soube o que a personagem iria passar, comecei a ler muito sobre o assunto. Livros, revistas, relatos na internet… E também comecei a perguntar a algumas pessoas negras situações de preconceito pelas quais elas haviam passado. Porque há diversos tipos de reações: existe gente que se revolta, gente que não fala nada, gente que não aceita desaforo algum. Fui pegando diversos tipos de histórias pra tentar entender qual é o comportamento da maioria, mas descobri que isso não existe. Não há um comportamento mais comum. Vai de cada personalidade. Cada pessoa leva a questão de uma forma. Então, Raquel é uma pessoa que não existe, mas que está representando várias. Ela tem que carregar o sentimento dela e alguém vai se identificar. E mesmo quem não se identifique vai compreender. Eu me abstive de representar alguém específico. Nem o que eu mesma passei. É o sentimento dela, e vamos lá.
E no caso do relacionamento inter-racial, vale o mesmo?
Sim. Mas vai também do que foi escrito para a personagem, né? Não tem muito como fugir, mas eu gosto muito da forma como o relacionamento foi conduzido. A Raquel não é rancorosa. Ela não abandonou o amor por causa do preconceito. É o que eu acho que todo mundo deveria fazer. Porque já ouvi casos de pessoas que resolveram nem levar um namoro adiante quando depararam com as primeiras situações assim. Mas, se é amor, amor, é difícil abrir mão. Foi o caso da Raquel: se passaram 10 anos, e ela não abriu mão. Continuou amando o mesmo homem apesar dos problemas.
Hoje uma menina que liga a TV enxerga você interpretando uma juíza negra em uma novela que aborda questões raciais. Você cresceu vendo esse tipo de debate em algum lugar?
Acho que é bem diferente de quando eu era criança. Há uma conscientização maior como um todo. Representatividade, por exemplo. Meninas negras, no meu tempo, tinham o cabelo alisado. Era uma forma de fugir de agressões, de xingamentos na escola.
Quando eu cheguei à idade de poder alisar o cabelo, foi a primeira coisa que eu fiz. Ainda pequena. Era uma forma de ter a vida um pouco mais fácil. Hoje, vejo tanta criancinha de cabelo black, amando o cabelo como é. Isso vem da minha geração, que foi crescendo de forma mais consciente e está criando os seus filhos também mais conscientes. É algo que eu não tive. Não tenho a lembrança de discutir sobre racismo e preconceito na minha casa. A gente era negro e só, não tinha discussão sobre isso. Então, muita coisa do que eu passava na escola, não chegava em casa e falava.
E qual é o papel da mídia? Ela estimula esse debate ou é estimulada por ele?
Os dois. Hoje em dia, uma criança tem a referência de ligar a TV e dizer que o cabelo é igual ao da Fulana. Querendo ou não, essa coisa de TV é muito forte. A novela, a propaganda… Quando ela vê algo positivo que é semelhante a ela, isso dá um respaldo, uma força, de ser parecida com alguém. Até no Instagram eu vejo isso. Crianças ou mães que me marcam na foto para me mostrar que estão tentando reproduzir uma foto minha. E ela está se sentindo bonita fazendo aquilo. Ainda tem um caminho grande, mas os pais estão mais conscientes. As crianças não se conscientizam sozinhas.
Você tinha ídolos negros, pessoas em quem você se espelhava por serem como você?
Não, não tinha. Tinha um ídolo que era o Alexandre Pires, mas não associava a ele ser negro. Havia a Taís Araújo, que ainda é a minha inspiração, mas não era como hoje, que há uma leva maior de profissionais. Não só modelos, atrizes ou esportistas. A musa inspiradora para essa segunda fase da Raquel, por exemplo, é uma desembargadora negra carioca, a Ivone Caetano (ver texto na página ao lado). Fui atrás da história dela e me apaixonei. É importante que essas pessoas sejam reconhecidas, para que saibam que elas existem e inspirem outras. Na minha época, de atrizes, lembro da Zezé (Motta), da Isabel (Fillardis), da Taís (Araújo) e só. Mas eu nunca me imaginei sendo atriz, talvez por isso não lembre de tantas.
Ah, não?
Não (risos), minha história é bem atípica. Porque em geral as pessoas estudam vários anos Artes Cênicas e vão. No meu caso, já fui para um teste e passei. Então eu vou estudando enquanto trabalho. O trabalho é a minha escola. Meu foco maior é ir fazendo e aprendendo ao mesmo tempo. Não me preocupo só com o meu personagem, mas com todas as coisas em volta da atuação. E todo dia eu aprendo alguma coisa nova.
E gosto muito. Tenho interesse em tudo relacionado à minha profissão. Até o que não é atuação: a iluminação, a fotografia. Acho que se você tem a oportunidade de ir além da sua função, faz toda a diferença. E comecei sem saber nada, nem do meu lado da câmera, nem do outro. Desde Subúrbia (minissérie de 2012) eu tive que fazer e ir perguntando, observando.
E você sonhava em ser o quê?
Da adolescência em diante, eu queria ser modelo. Um pouco por essa coisa de preconceito também. Acho que era a minha forma de lutar contra isso, contra o estereótipo da modelo loira de olho azul. O teste para Subúrbia foi divulgado como uma campanha publicitária. Se fosse um anúncio para atrizes, eu não teria ido. Acharia que não teria qualificação para isso. Fui sem saber do que se tratava e acabei passando por todas as etapas. Demorei a acreditar quando disseram para o que era a seleção de verdade. Porque já havia passado por muita coisa: gente que ria das minhas fotos, seleções que, no final, eram uma malandragem para tirar dinheiro de meninas ingênuas. Olha, não é fácil.
Você contou que alisava o cabelo desde criança. Quando começou a assumir o crespo natural?
Mudei exatamente por causa de Subúrbia, há seis anos. Passei todos os anos da minha vida de cabelo alisado. Quando fui fazer o teste, estava com o cabelo longo e liso. Perguntaram se eu me importaria de cortar e nem pensei para responder, mas me doeu por dentro. Me deu muito medo, porque o cabelo era uma espécie de proteção pra mim. Aquele lisão até a cintura era como um manto que me livrava de uma porção de coisas. Uma fuga de ofensas, de olhares… Eu acho que é isso que leva muitas meninas a alisar. Algo psicológico.
Você falando, lembrei de um episódio recente aqui na região metropolitana de Porto Alegre. Uma professora começou um projeto estimulando as meninas a aceitar os seus cabelos naturais e percebeu que, com o tempo, até as notas delas aumentaram.
É mesmo? Para você ver como esse papo de autoestima não é besteira. Você se sentir bonita, segura, capaz, é muito importante. Se você ouve ofensas, aquilo atrapalha até na sua vida sentimental. Você se sente feia, acha que não merece um namorado, uma nota boa. No meu caso, só quando eu estava com o cabelo bem alisado, com a raiz bem baixa, eu achava que estava tudo certo.
E como foi cortar?
Foi muito sofrido no início. Tanto que não consegui cortar tudo de uma vez. Eu tinha megahair na cintura, cortei abaixo da orelha. Depois foi subindo. Você se sente exposta. Demora para perceber que está tudo bem. É legal ressaltar também que estamos nessa onda de todo mundo deixar o cabelo black, se aceitando e tudo mais, mas também não pode ser uma ditadura. Se quiser ser loura, seja. Se quiser alisar, alise, mas sendo consciente do que é. Alisa porque gosta dele assim, mas não para deixar de ser negra. Importa é a consciência.
Imagino que muitas pessoas a abordem por causa da Raquel. Alguma história particularmente te marcou?
Pois é, eu imaginava que haveria bastante repercussão, mas não tinha ideia de que seria tão grande e que as pessoas me parariam para falar coisas tão bonitas. Agora, no Réveillon, eu estava na Bahia. Em geral as pessoas te abordam, falam algo rápido e pedem para tirar foto. Mas esse homem, um negro de pele bem escura e cabelo raspado, parou, pegou na minha mão e falou assim: “Olha, eu sou uma pessoa que já morou na rua. Vim de um lugar muito pobre, e dei a volta por cima. Eu estudei e sou advogado. Todo mundo olha e ninguém acha que eu sou advogado. Eu sou parado por polícia, sou barrado em lugares, sou julgado pela minha aparência”. As pessoas amam aquela cena em que a Raquel se apresenta na casa de Nádia (Eliane Giardini). Então ele disse: “Quando você falou ‘eu sou a nova juíza’ e aquela mulher desmaiou, eu fiquei todo arrepiado. Sempre que eu sinto uma cara fechada para o meu lado, uma pessoa insinuando não me deixar entrar em algum lugar, eu tiro a minha carteira da OAB. Acho que elas só não desmaiam porque é coisa de novela”. Eu fiquei tão feliz com essa história! Ouço incentivos de muita gente que estuda Direito também. Então, acredito que esse papel é um presente do Walcyr (Carrasco, autor de O Outro Lado do Paraíso) não só para mim, para todo o Brasil.
Você acha que chegará o dia em que haverá uma personagem juíza negra, ou um relacionamento inter-racial, e isso não vai ser uma questão?
Eu torço muito, mas eu não digo “com certeza”. Torço para que o homossexual seja homossexual na novela sem precisar falar sobre isso, para que a juíza seja negra sem isso gerar nenhuma cena de ofensa, mas, no atual momento, ainda não vejo isso acontecer. Acho que a gente ainda tem muito o que caminhar. O autor pode até escrever a cena, mas o público não vai conseguir olhar sem tocar no assunto de que ela é negra ou de que o namorado dela é branco. As pessoas estão ficando mais liberais na vida, mas na TV elas ainda não aceitam certas coisas com a mesma naturalidade. Beijo homossexual. Na rua se vê, mas na TV, assistindo, ainda é uma polêmica. Faz diferença, também, a minha personagem ser juíza desde os primeiros 30 capítulos. O sucesso não ser apenas no desfecho, em um final feliz de novela. Ser uma mulher forte desde o início.
É uma forma de mostrar que podemos. São passos curtos, mas poderosos.
A RAQUEL DA VIDA REAL
Para compor a personagem Raquel Custódio, Erika Januza buscou inspiração na primeira juíza e primeira desembargadora negra do Rio de Janeiro, Ivone Ferreira Caetano. As duas se conheceram em uma palestra na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, em que Ivone ingressou em 1994, já aos 49 anos.
– Marcamos um horário e ficamos uma tarde conversando. Me apaixonei pela história dela e tentei levar muito do que observei da postura e dos gestos dela para a personagem – conta Erika.
Ivone é filha de uma lavadeira que criou 11 filhos sozinha.
O currículo impressiona pela obstinação e pela perseverança. Ivone chegou a trabalhar em três lugares simultaneamente para ajudar a família. A faculdade de Direito ela iniciou aos 25 anos, depois de casada. Já formada, fez nove concursos para o mesmo cargo até ingressar no serviço público. Em 2004, Ivone se tornou titular da 1ª Vara da Infância da Juventude e do Idoso, onde ganhou fama de juíza linha dura por determinar a internação compulsória de adolescentes usuários de crack e da primeira adulta, uma mulher grávida de 22 anos.
O cargo de desembargadora veio aos 69 anos, a meses da aposentadoria compulsória em razão dos 70 anos. Desde então, Ivone assumiu a Corregedoria-Geral Unificada (CGU) do Rio de Janeiro.
Questionada sobre o papel de Raquel em O Outro Lado do Paraíso pelo jornal O Globo, Ivone elogiou o desempenho de Erika, mas fez uma ponderação:
– A denúncia do racismo e a exibição de pessoas negras bem-sucedidas poderia ter sido há 20 anos.
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