Foto: João Viegas Encontro de Alices - Foto: André Avila, divulgação Foto: Franco Rossi Foto: Maikel Silva
– Tu lembra de dizer aí que sou criada em Santo Antônio da Patrulha, senão o povo de lá me mata – brincou Alice Salazar, aos risos, ao final da conversa por telefone, desde São Paulo, onde mora.
Como se fosse possível esquecer deste detalhe: um dia antes da entrevista, eu havia lido as 144 páginas do novo livro de Alice, Do Outro Lado do Espelho (Universo dos Livros) e a cidade de 42 mil habitantes onde a blogueira de 34 anos viveu sua infância e adolescência é uma das protagonistas da história. Lá a garota cresceu vendo a mãe, a designer de sobrancelhas Margarete, maquiar-se diariamente logo ao acordar e, em datas especiais, a ajudava a arrumar as mulheres da cidade.
– Uma vez, estava cheia de clientes e chegou uma pedindo que eu a maquiasse. Eu não ia conseguir, então perguntei se podia ser com a Alice, mas ela não quis. Hoje, o arrependimento dela é nunca ter se maquiado com a Alice quando pôde – conta Margarete. – Minha filha deslanchou sozinha. Aprendeu para seu debut e hoje sou eu que aprendo com ela, como o truque de usar pó solto embaixo do olho para não sujar - diz a mãe, a única responsável por delinear as sobrancelhas da filha famosa.
Foi também em Santo Antônio da Patrulha que Alice beijou o cara que reencontraria e com quem se casaria muitos anos depois. E onde, há dois anos, a maquiadora, consumida pelo excesso de trabalho já como a maior blogueira de beleza do país, percebeu que estava com sintomas de depressão.
No recém-lançado livro Do Outro Lado do Espelho, que terá sessão de autógrafos no dia 12 de dezembro, em Porto Alegre, Alice abre o coração sobre sua história com o mesmo jeitão despachado e humor ímpar que conquistaram seus quase dois milhões de inscritos no YouTube. Há sete anos, ela compartilha suas técnicas de maquiagem no canal de vídeos enquanto trava longas conversas com suas “Gráubi” e “bujãozinho de gás”, como chama carinhosamente as seguidoras. Palpita sobre a novela enquanto manuseia o curvex, canta o hit do momento enquanto limpa os pincéis, sai para catar um batom pela casa e deixa a câmera ligada e você ouvindo os barulhos e olhando para a parede… Nada mais Alice do que isso, sem contar os (muitos) palavrões – quem mais tem coragem de deixar registrado que fez uma “cagada” ao passar errado o delineador?
Suas melhores dicas foram reunidas no primeiro livro, De Bem Com o Espelho (2013), um ano após lançar sua própria linha de make. E a fama de Alice extrapola o mundo virtual e o universo da maquiagem: é parada por fãs por onde passa, dá palestras em todo o Brasil, tem contratos com marcas de moda nacional e até da China e agora também atende por empresária, comandando uma rede de franquias com seu nome. Na entrevista que você lê a seguir e no livro, mostra que é “gente como a gente” – exceto que nunca sai de cara lavada nem para ir à padaria – e conta o que rola em sua vida quando a câmera está desligada.
A base de tudo
A garota sonhava em ser dentista – foram dois vestibulares sem sucesso, até decidir outro rumo. Enquanto isso, para pagar as contas, trabalhava como telefonista em um escritório de advocacia, ganhando R$ 300 por mês. O maior desafio não era decorar todos os ramais, e sim conter o jeito expansivo em um ambiente formal. Foi demitida, sofreu se achando incompetente e precisou pensar em outro caminho.
– Olha, até que durei bastante tempo lá! Foram três anos. Eu sentava com a colega na mesma mesa, a gente ria o tempo todo, nosso comportamento era totalmente infantil – recorda Alice, rindo da mesma forma que fazia ao telefone no trabalho.
Por lá, com seu uniforme terninho preto, a maquiagem já estava presente no dia a dia. Por ter crescido entre pincéis e makes, Alice decidiu se profissionalizar: fez dois cursos, um no Senac e outro no Instituto Embelleze. Foi indicada por uma professora a uma vaga de maquiadora no Grupo RBS, e começou a trabalhar no Canal Rural e na RBS TV. Lá, adquiriu prática ao assinar o look de apresentadoras e repórteres, com seus diferentes formatos de rostos e tons de pele e cores de olho, e a pressão do tempo exíguo no camarim.
Um dia, seu grande amigo Yuri Ruppenthal, fotógrafo, sugeriu que ela criasse um blog. Por que não? Nascia assim, em 2010, o Espelho Meu, hospedado no portal clicRBS, vinculado ao site Donna. Se hoje parece óbvio gravar vídeos para explicar o passo a passo, naquela época tudo era novo e motivo de dúvidas. Primeiro, Alice começou escrevendo textos. Depois, ilustrava os posts, passo a passo, com fotos. Mas, detalhista, isso não era suficiente:
– Queria realmente explicar como eu fazia. Mas sabe que eu morria de medo disso? Eu pensava: “Vou ensinar tudo e depois minhas clientes nunca mais vão se maquiar comigo! Vou perder ‘as mulher’ (risos)”.
O temor se mostrou infundado desde que o primeiro vídeo foi ao ar, em maio, com 10 minutos de duração, limite que o YouTube permitia no seu recém-criado canal. Mês a mês, o blog ia crescendo de audiência de forma orgânica, como a gente acompanhou de camarote por aqui. Alice foi uma das pioneiras a postar tutoriais, ao lado de nomes como Julia Petit e Camila Coelho. Nos primeiros vídeos, estava mais dura, contida. Com o passar do tempo, criou intimidade com a câmera e foi se soltando. Comemorava cada novo e-mail do clicRBS com o relatório de blogs: estava sempre entre os 10 mais lidos e, depois, liderava o ranking. Conforme o YouTube liberava mais tempo por sua relevância, Alice aproveitava: não raro, fazia vídeos com meia hora de duração. Um dos hits foi “maquiagem no ônibus”, gravado sacolejando em um lotação que subia para o Morro Santa Tereza.
– Eu não sabia editar, só apertava no Rec e depois no Stop. Ia me maquiando e falando, nem cuidava o tempo.
A rotina era trabalhar durante o dia na RBS TV para, à noite, dedicar-se ao blog: gravava sozinha no JK de 18 metros quadrados em Porto Alegre. Em paralelo, passou a ser chamada pelas seguidoras para dar cursos de automaquiagem Brasil afora. E assim, por três anos, todos os finais de semana ensinava de quatro a seis turmas de 12 alunas viajando para lugares como Amazonas, Acre, Tocantins e até Portugal e Japão, onde fãs brasileiras organizaram cursos.
JOGO DA VERDADE
Revista Donna convida Alice para uma sessão de "perguntas indiscretas":
Boca a boca
Um episódio-chave para entender a ascensão da blogueira se deu em abril de 2011, quando ela venceu, por votação popular, o concurso Conexão Beauty Art Avon. Alice criou quatro makes, mandou fotos e convocou as leitoras a votarem. Ganhou o título de Melhor Maquiadora do Brasil na categoria Social, cujo prêmio era um curso em uma escola top de Nova York. Era o céu para quem nunca havia saído do Brasil e queria estudar mais.
E então veio o inferno: o visto para os Estados Unidos foi negado. “Tive uma das piores sensações da minha vida. Me senti humilhada, pois vi meu sonho ser destruído sem um motivo justo”, descreve no livro. Mesmo arrasada, precisava explicar às leitoras o que tinha acontecido. Os olhos estavam tão vermelhos de tristeza que o tema do vídeo não podia ser outro: “maquiagem para quem está chorando”. Ali, ela se abriu como sempre. Enquanto aplicava o corretivo para disfarçar o inchaço, conversava – entre fungadas e suspiros – com a câmera.
Do outro lado do vídeo, uma das espectadoras se sensibilizou e foi além do play: “Se cada um ajudar um pouquinho, seria uma forma direta de reconhecer o teu trabalho. Existe um site chamado Vakinha Online. Deixa a gente te ajudar? Já que os americanos não te querem, visite os europeus”, escreveu a leitora Juliana Pereira.
A mobilização virtual das fãs deu mais do que certo e, um ano depois, Alice havia angariado R$ 9 mil para ir à França, onde ficou por um mês e fez dois cursos em escolas famosas de Paris.
– Na época, foi uma tragédia, uma perda gigantesca. Mas, hoje, ter essa história para contar vale mais do que ter ido a NY.
Brilho próprio
No último dia 28, a gaúcha esteve no RS para inaugurar a quarta franquia da Alice Salazar Store, no ParkShopping Canoas (até janeiro, serão seis em todo o Brasil). Sua chegada à loja estava marcada para as 19h. Três horas antes, já havia fãs esperando. O carinho do público começou já com a recepcionista do hotel – que relatou ter aprendido a esfumar os olhos com a blogueira – e se seguiu até o primeiro passo no shopping, onde foi recebida como pop star.
O primeiro abraço foi para a maquiadora Jenifer de Lima Soares Neumann: elas foram colegas na época de RBS TV e não se viam desde então. Jenifer abriu um salão no bairro Igara e, quando viu um post de Alice no Instagram sobre o modelo de franquias, decidiu apostar alto. Com a venda do carro e um empréstimo, tornou-se franqueada de Alice. Naquela noite, testemunhou a amiga famosa tirar 600 selfies dentro de sua loja. E muitas delas com crianças. Alice Baltezam, oito anos, de Esteio, é uma delas: começou a assistir aos vídeos de maquiadora na companhia da mãe e inspirou-se nela para criar seu próprio canal, Hora da Alice, com 22 mil inscritos.
– Olha aí a minha xará – disse Alice Salazar, que havia recebido um vídeo da pequena Alice pelo celular.
Na sequência da fila, a maquiadora Franciellen Dubiel, 23 anos, estava emocionada de contar pessoalmente a Alice que o blog foi a inspiração direta para ela escolher uma profissão. Em 2010, aos 16 anos, Franciellen um dia visitou a irmã e foi intimada a conhecer o novo vício da casa. A arquiteta Simone Dubiel buscava um tutorial de babyliss, encontrou Alice, ficou horas vendo um atrás do outro e morria de rir com as tiradas que pareciam sob medida.
– Alice disse: “Tá aqui me assistindo mesmo tendo uma pia de louça cheia para lavar?” E era bem isso – diverte-se Simone.
O primeiro que Franciellen viu naquele dia é um dos mais famosos do canal, no qual Alice divide o rosto no meio com lápis e mostra de um lado como você se maquiava antes de conhecê-la e como se maquia depois de aprender suas técnicas. Aqueles 30 minutos de passo a passo foram mais eficazes do que qualquer teste vocacional.
– Alice foi meu chão. Sou extremamente grata pelo trabalho dela, sem isso eu com certeza não teria encontrado a paixão que é essa profissão e não teria descoberto a magia que isso tem de nos fazer sentir melhor consigo mesma - contou Franciellen.
Combinação perfeita
O ano era 2013, Alice se dividia entre cursos pelo país e mal parava em Porto Alegre. Mas uma “pedrada” recebida pelo Facebook a fez incluir Curitiba nas rotas: era lá que morava Maikel, conterrâneo de Santo Antônio da Patrulha, aquele com quem um dia havia trocado nada mais do que uns beijos em uma festa. Ele estava divorciado, com uma filha pequena. Três meses depois, começaram a namorar após muito papo virtual.
– A autoestima dela foi uma das coisas que mais me encantou. Para mim, ela é a mulher mais bonita do mundo – declarou o apaixonado.
O relacionamento à distância se seguiu até 2015 quando Alice contratou Maikel para administrar sua carreira, e o casal foi morar em São Paulo. Desde então, o publicitário gerencia tudo, desde agenda de eventos até organização dos vídeos. No dia 13 de junho deste 2017, dia de Santo Antônio – padroeiro da cidade deles –, casaram em Londres, onde ficaram por três meses para fazer cursos de aperfeiçoamento: ela de make, ele de multimídia. De tanto Maikel ver as gravações, aliás, sabe até maquiar, o que já gerou um vídeo cômico em que a pinta sem borrar (muito).
Um capítulo inteiro do livro é dedicado à família, a detalhar o quanto de sua personalidade é herdada dos pais, que já passaram por muitos perrengues, especialmente financeiros, mas sempre com união. Por conta da dedicação que pretende ter quando for mãe, Alice – que tem uma enteada de 11 anos, Pietra – optou por congelar óvulos: a maternidade virá lá pelos 39 ou 40 anos, planeja.
– Quando guardei os óvulos, logo em seguida me aparece a Ivete grávida, viu? Eu e minha “ídola” (risos). Um dia vou ser mãe, mas não tenho pressa. Ainda tenho um monte de coisa para realizar antes.
Dias de sombra
No livro, Alice se abre sobre um tema do qual nunca tratou nas redes sociais, a depressão. Não por tabu, e sim porque foi um período bem íntimo, de autoconhecimento em sessões de terapia. Ela desabafou pela primeira vez sobre o que estava sentindo com um dos irmãos, o obstetra Cristiano Salazar. Com uma lista de nomes para consultar na Capital, conheceu o psiquiatra Júlio Conte e começou a se tratar. Em meio ano, voltou a se sentir a Alice de sempre.
– Na terapia, o foco é eliminar ou mudar o que te faz mal. Eu havia colocado muita pressão em cima de mim. Estava irritada, triste. Com cada um é diferente. Espero mostrar meu caso para poder ajudar outras pessoas – relata.
Para diminuir o ritmo, fez vários ajustes: um deles foi trocar os cursos de automaquiagem por palestras em que podia transmitir o mesmo conteúdo para centenas de pessoas. Assim ela tentava lidar com pelo menos um dos fatores que a angustiavam: a percepção de que jamais daria conta de tudo. A fila de espera para aulas no Rio de Janeiro, por exemplo, passava de 600 mulheres. O peso da fama do seu trabalho foi também resolvido no divã.
– Júlio me disse em uma sessão e levo como guia: “Alice, você recebe tudo isso porque você já deu muito a elas! Você só recebe o retorno de todo o amor que você já deu. Aliás, você deu coisas valiosíssimas. Você deu uma pessoa para elas amarem. E deu para a mulher, por meio da maquiagem que ensina, a capacidade de ela se amar”.
Olhos no futuro
Quando conheceu Paris em 2011 naquela viagem custeada pelas fãs, Alice vislumbrou o que queria um dia na vida: empreender.
– Pisei em uma loja Kiko Make Up (marca italiana) pensei: é isso, um dia terei algo assim, produtos populares e de qualidade. E olha que doido: em Camboriú, havia mil pessoas, foi a primeira loja que inaugurei, pararam a rua para eu atravessar. Alcancei o que queria – conta.
Maikel revela que os planos para 2018 é chegar a 10 lojas até setembro (aos interessados, o investimento parte de R$ 75 mil). Para além da maquiagem, a carreira de influencer decola. Desde que passou a integrar o badalado time de influenciadoras da F*Hits, ela investe em seu potencial fashion e angaria novos patrocinadores, inclusive frequentando as semanas internacionais de moda há dois anos. Atualmente, tem contrato com Dafiti e Azaléia, já fez ações para Passarela e Riachuelo e foi a embaixadora brasileira do 11/11, maior campanha de compras do site chinês AliExpress. Os posts mais curtidos dos últimos tempos no Instagram são, justamente, looks do dia.
Em paralelo a tudo isso, o canal do YouTube continua sendo prioridade: neste mês de dezembro, Alice e Maikel apostaram no formato VEDA (abreviação da frase em inglês 'Vlog Everyday April' ou 'Vlog Everyday August', o que significa 'vídeos todos os dias). Ou seja, diariamente entre 11h e meio-dia, um conteúdo inédito é publicado. Mesmo com seus 658 videos já publicados, Alice garante que o que não falta é assunto:
– O Maikel trouxe o planejamento para a nossa vida, pela experiência profissional dele. A gente se reúne e avalia o que deu certo ou não. Analisamos as métricas, vemos de onde vem a audiência, o que mais estão pedindo… E o que não teve muito retorno a gente esquece – conclui Alice.
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