Próxima turma em Porto Alegre será em agosto - Via @aceitaidiota_
Até os 19 anos, a carioca Giuliana San Martini Libar, hoje com 31, não sabia quem era seu pai. O avô materno vetou a presença dele na vida da neta antes mesmo de ela nascer. “Você não vai assumir: vai sumir”, disse o patriarca da família italiana San Martini em um encontro com o rapaz, à época com 20 anos. Fabiana, a mãe, tinha 17 e manteve a história em segredo por duas décadas.
Todo dia 23 de maio, o ator Márcio Libar era lembrado por sua mãe de que era a data de nascimento da filha que não conhecera. Até tomar coragem e entrar em contato. Antes de completar 20 anos, Giu recebeu um e-mail surpreendente: o pai a encontrara pelo Orkut. Depois de se encontrarem e ficarem abismados com as semelhanças, foram morar juntos. Hoje, a empreendedora cultural e o pai são mais do que melhores amigos: são parceiros em projetos profissionais, rodando o Brasil com o workshop de vivência artística Grand Cirque du Messiê Loyal, trabalho iniciado no Rio de Janeiro que deu origem ao movimento orgânico #aceitaidiota, que encontrou em Porto Alegre seu segundo grande mercado.
A HISTÓRIA DE GIU
"Minha mãe engravidou muito jovem. Quem me criou desde bebê foi minha dinda, irmã da minha avó materna. Foi na casa desta tia-avó que minha mãe, com 17 anos, se escondeu até os cinco meses de gestação para evitar que a família pedisse o aborto. Aquela havia sido a maior inconsequência da vida dela, e a maior sorte da minha. Eu, no lugar dela, não teria essa responsabilidade. E é este o ápice da questão que me faz perdoá-la de qualquer coisa, de todos os equívocos que possa ter cometido depois.
Meu avô materno tem um envolvimento decisivo nessa história. Minha mãe escondeu de todos quem era o meu pai verdadeiro. Só meu avô sabia e, ao descobrir, ficou apavorado e disse: “Fabiana, esse cara não precisa se aproximar de você, a Giuliana nunca vai precisar de uma referência negra e pobre. Vamos marcar um encontro com ele para dizer que ele está liberado, que ele não precisa assumir, que ele vai é sumir”.
Não foi um encontro suave. Meu avô apareceu com um segurança. Meu pai (depois quando nos conhecemos) me contou a versão dele: “Estava saindo de casa e vi na esquina um branco de olhos azuis de quase dois metros de altura do lado de um negro com dois metros de altura. Pensei que iria apanhar, com certeza”, relatou. Aos 20 anos, ele tinha acabado de ser expulso da escola, estava começando um grupo de teatro, mas disposto a abrir mão de tudo para assumir a responsabilidade de ter um bebê.
Minha mãe contou para toda a família que eu era filha de um ex-namorado que vivia embarcado, trabalhava na Marinha. Ela de fato teve este namorado marinheiro. Mas sou fruto de uma história paralela de uma noite só, três meses de saídas aleatórias no final dos anos 1980. Não foi nada sério. Então, era mais fácil dizer: “Fabiana, a menina bem-educada, frequentou as melhores escolas, engravidou de um rapaz que sumiu no mundo”.
Só que, quando fiz 16 anos, esse cara apareceu em uma festa de família. Era o casamento do filho da minha dinda, aquele tipo de evento em que surgem pessoas que você nem sabia que existiam. Rogério surgiu, e eu estava felizaça. Mas, em um rompante de lucidez, falei para minha mãe: “Quero um exame de DNA. Me prova que a história que você contou a vida inteira é verdade”. Foi o caos da festa. Só que o DNA demora 30 dias para ficar pronto. Minha mãe tinha muito amor por esse namorado, queria muito acreditar que eu pudesse ser filha dele. E veio o resultado negativo. Aí, decidi: chega, não preciso dessa história. Minha mãe chegou lá em casa, abriu a porta e tinha um choro visceral, aqueles que partiam do estômago, “Me desculpa”, pediu. E eu assim: “Mãe, tá tranquilo, eu não saberia estar grávida no ano que vem. Vamos ali fazer um lanche, estou faminta”.
Só que, no meio deste bafafá da paternidade, minha grande rebeldia foi desaprender a competir. E eu tinha sido até pré-convocada para o projeto olímpíco Atenas 2004. Perdi algo ali. Fui me desligando da natação, que era minha maior válvula de escape. Minha dinda dizia que eu tinha que cobrar minha mãe para ela contar quem era meu pai. Mas e se viesse um outro e desse negativo? Nunca perguntei nada. Virei expert em engolir coisas. Era uma engolidora de sapos nata. Engolia revoltas com meu técnico, tinha medo de não ser amada se entregasse nota baixa. Minha dinda foi muito sagaz, me colocou na terapia com sete anos (ela dizia que era uma fonoaudióloga).
Terminei a escola sem saber o que iria fazer. Fui cursar Hotelaria. Comecei a fazer um processo seletivo para trabalhar na Disney. Um dia recebi um e-mail e, pelo subject, achei que era uma corrente. Começava assim: “Há muitos anos venho tentando te achar. Você já se tornou mulher, fez suas escolhas, talvez eu nem faça parte delas. Mas estou aqui. Meu nome é Márcio Libar. Se você digitar meu nome no Google, vai encontrar várias referências. Meu telefone é tal-tal-tal”. E eu pensava, nossa, é um completo maluco, psicopata, óbvio, passou até o número para ligar. Fui no Google Images. Digitei Márcio Libar. E, então, apareceu um homem de fraque, bengala, cartola, dreadlocks, uma barba bem fininha... Era o Messiê Loyal (personagem de Márcio na oficina A Nobre Arte do Palhaço), em uma reportagem do Jornal do Brasil. “Palhaço que transforma vidas etc”, dizia. Esse cara se parece muito comigo, nossa.
Voltei ao e-mail. “Como homem, a gente tem que estar frente a frente aos nossos medos diariamente, e vir falar com você é um medo meu. Não sei quem você é, você não sabe quem eu sou, sempre te amei, sempre te quis perto. Pronto, falei. Teu pai”. Nossa, tem um maluco que descobriu minha história e fez uma aba no Google com fotos, um cyberbulling sinistro. Me recusei a acreditar.
Mas respondi a mensagem. Fui dando uns toques para ver se ia ligando os fatos. Ele respondeu dizendo que conheceu minha mãe no teatro. Ela tinha sido atriz no Sesc, ambos foram figurantes do clipe Eu Queria Ter uma Bomba, pouco antes de Cazuza deixar o Barão Vermelho. Foi lá que se conheceram. Então, dei meu telefone, e ele ligou. Passei a madrugada lendo sobre ele na internet. Soube que era palhaço, que era ator, que estava gravando um filme justo com quem? Com Evandro Mesquita, pai da minha amiga. Ou seja, eu estava energeticamente perto de papai, era louco isso.
Marcamos um almoço lá em casa. Eu estava de bermuda jeans, chinelos, uma bata rosa e faixa no cabelo. Quando abro a porta para receber, Márcio estava de bermuda, chinelos, faixa no cabelo e uma bata branca. Igual a mim! Nós nos olhamos pela primeira vez e desviamos o olhar, porque foi muito intenso. Meu dindo dizia: “Nunca vi tanta semelhança na minha vida”. E minha dinda, mesmo assim, sugeriu o DNA. “Giu já tem um ‘não’ na vida dela, ela precisa de um ‘sim’. Em paralelo aos 30 dias do exame, minha dinda se inscreveu na oficina do palhaço ministrada pelo meu pai. Ela era professora primária de uma escola tradicional do Rio e voltou impressionada: “Seu pai é um bruxo”.
Nesse meio-tempo, passei na seleção da Disney. Antes de partir para ficar três meses fora, minha dinda marcou um jantar com todo mundo e fez um comunicado. “Márcio, a Giu está encantada com seu mundo. Vou me aposentar, meu marido já enfartou três vezes, vou fazer um mochilão. Quando ela voltar, vocês dois têm que viver essa história juntos”. Ou seja, minha dinda me deu! Foi louca essa noite. Não estava entendendo por que ela estava fazendo aquilo. Mas foi por amor. Eu não estava preparada. Estava indo para outro país, meu primeiro emprego e, quando voltei, fui morar na casa de uma pessoa estranha. Não sabíamos nada um do outro – só sabíamos que a gente dormia na mesma posição (de barriga para baixo e com a mão na testa).
Ele resolveu me procurar porque tudo estava dando certo naquele momento de vida, prestes a completar 40 anos. Minha avó materna, dona Nilce, sempre o lembrava do dia 23 de maio, meu nascimento. “Márcio, hoje é aniversário da sua filha, você tem que achá-la.” Ele começou a me procurar com as informações que tinha, pelo sobrenome da minha mãe. O irmão dele, meu tio, buscou por “San Martini” no Orkut. Apareceu lá minha família toda italiana e eu, com uma touquinha rasta e óculos escuros. Ele ligou para o meu pai e se surpreendeu: “Caraca, ela parece a mamãe (a avó materna). Manda uma mensagem!”. E assim foi.
Eu não sabia qual era o meu propósito até encontrá-lo. Hoje, trabalhamos juntos no Grand Cirque du Messiê Loyal. Costumo dizer que o palhaço mudou a vida do meu pai e de muita gente. E um palhaço mudou a minha vida também.
* Depoimento a Camila Saccomori.