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Por Rossana Silva, especial
Quando o telefone tocou nos estúdios da TV Globo, Maria Júlia Coutinho se preparava para anunciar uma quinta-feira de calor no Rio Grande do Sul. No vocabulário da apresentadora da previsão do tempo do Jornal nacional, um típico dia de verão em Porto Alegre pode ser uma “quentura”, com o sol “rachando”. Ao levar termos informais para a TV, ela deu tom coloquial ao quadro e mudou a maneira como a meteorologia é tratada no principal telejornal do país.
Fenômenos climáticos como os que fazem a temperatura da água do mar estar uma “delícia” em uma cidade e o céu a estar mais limpo em outra região são explicados de maneira simples. E assim a jornalista de 38 anos criou uma familiaridade com o público: toda noite, surge na sala dos telespectadores para bater um papo descontraído.
A maneira descomplicada de lidar com o clima rendeu livro, o recém-lançado Entrando no clima, que explica frentes frias e quentes, neblinas, geadas, tornados e outras “meteorologices”, e música. Nos versos de Tempo firme, que bombou no YouTube, o músico baiano Jarbas Bittencourt canta que “não há um dia de sol, uma noite de chuva não há, se Maria Júlia não passar”.
Em meio à trajetória ascendente, Maju foi vítima de ataques na internet. Em 3 de julho de 2015 – justamente o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial –, comentários racistas contra ela foram publicados na página do JN no Facebook. Milhares de fãs se mobilizaram em sua defesa, levando a hashtag #somostodosmaju ao primeiro lugar entre os Trending Topic do Twitter no Brasil, além da investigação do crime pela Justiça.
Mais de um ano depois do episódio, Maju diz sonhar, agora, com o dia no qual será apenas uma entre muitas mulheres negras ocupando espaços na TV, sem a necessidade de rótulos como a primeira ou única apresentadora negra da previsão do tempo. Um objetivo para o qual ainda falta muito avançar, conforme comenta na entrevista a seguir, realizada por telefone desde São Paulo.
Você está lançando um livro para apresentar a meteorologia de forma mais acessível. Esse tema sempre interessou você?
Quando era repórter, não ligava para a previsão do tempo. Andava sempre com uma bolsinha com galocha e guarda-chuva, porque não checava a previsão. Se chovesse, já estava equipada. Quando comecei a trabalhar com isso, passei a me interessar e a gostar. Achei muito curioso. A cada explicação de fenômeno que os meteorologistas me davam, eu tentava me aprofundar um pouco para entender. A curiosidade foi surgindo ao longo do trabalho, e é algo de repórter: qualquer tema que deem para a gente trabalhar, vamos perguntar por que, como, quando isso acontece. E fiz isso dentro da meteorologia. Fiquei apaixonada e recebi o convite para fazer o livro. Topei, com um pouco de medo, e contei com a ajuda de um meteorologista, que é coautor, além das fontes que fui fazendo nesses três anos que estou à frente da meteorologia.
Você mudou a apresentação do tempo, criando termos próprios e aproximando esse assunto das pessoas.
Tento trabalhar com a previsão de uma maneira mais conversada. A ideia é falar coloquialmente, como se eu estivesse mesmo na casa das pessoas. Mesmo que seja uma pessoa que você está visitando pela primeira vez, você não vai falar superformal com ela. Vai, dentro da medida, usar uma linguagem mais acessível. É o que tento fazer. Pela minha formação, por ser filha de educadores, sempre discuti em casa essa questão
O episódio de racismo do qual você foi vítima em 2015 gerou um debate no país, trazendo a público um preconceito que muitas vezes é velado. Como você tem lidado com isso?
Meus pais sempre trabalharam muito isso comigo. Desde que me conheço por gente, lembro deles lutando pela igualdade racial. Isso é muito da minha família e balizou meu crescimento. Nessa luta, claro que eles me formaram no sentido de que “Você é igual a todos, não existe diferença, aprenda a se defender”. Eu cheguei (à vida) adulta com essa formação forte. Graças a Deus agora, depois de passada toda aquela comoção da época dos ataques racistas, tenho notado que estou conseguindo cada vez mais ser a Maju. Não a jornalista negra, a primeira negra apresentadora da previsão do tempo, porque esses títulos me incomodam um pouco. Eu sou a Maju, que é mulher, brasileira, jornalista, e que também é uma mulher negra. Não quero que o fato de ser negra seja a única coisa que me defina.
Como você pretende lidar com esse assunto daqui para a frente?
Quero me formar mais, ler mais os pensadores e os ativistas que falaram sobre a questão, ter mais coisas para falar, e não ficar apenas na minha experiência pessoal. Em 2016, me dediquei a escrever o livro, então 2017 vai ser um ano para eu ler mais essas pessoas e chegar com um pouco mais de estofo nesse debate, saindo do raso. Quero ir além da minha experiência apenas, que é forte, mas precisamos avançar. E não quero me tornar escrava desse tema. Reluto com isso. Lancei um livro, quero falar mais sobre isso. Mas, se me perguntam sobre racismo, é claro que respondo.
2016 foi um ano em que a beleza negra foi exaltada, e as blogueiras negras, tanto feministas quanto de beleza, ganharam visibilidade. Como você vê o momento das mulheres negras?
Acho lindo essas meninas assumindo esses cabelos. A questão do cabelo é muito forte para mim. Cresci vendo cabelos de mulheres negras alisados na família e na rua. E hoje, quando vejo na rua criancinhas de black power ou mulheres assumindo seus cabelos crespos, considero uma conquista muito grande. O fato de ter tantas mulheres curtindo seu cabelo e sua negritude é muito lindo. E nada contra alisar, eu, se um dia quiser, farei isso, ainda que não me veja com cabelo alisado. Tem meninas que são realmente ativistas, e meninas muito jovens, empreendedoras, fazendo roupas étnicas. Fico feliz de estar vivendo esse momento da história e que minha mãe também esteja presenciando isso, algo que ela não viu quando jovem. E a minha avó, se estivesse viva, nem acreditaria que isso está acontecendo. Para mim, é histórico e significativo que haja tantas mulheres negras, e jovens mulheres, se movimentando. Isso me deixa muito feliz e esperançosa.
Você tem sido uma inspiração para mais mulheres negras conquistarem visibilidade também na TV.
Recebo muito esse retorno. Ontem mesmo, veio uma moça negra aqui na TV, me viu e ficou encantada. Falei que não havia motivos, pois sou de carne e osso, mas ela disse “Não é todo dia que a gente vê a representatividade na frente da gente”. É muito legal receber esse carinho, mas precisamos de mais um passo. Precisamos de mais mulheres negras na TV. Porque, quando tiverem muitas, você não fica com essa responsabilidade, que é muito grande. Claro que não sou a única, mas precisaríamos de mais, que me confundam, (a ponto de) de perguntarem: “Quem é aquela?” e errarem o nome, assim como erramos os das apresentadoras loiras, que, às vezes, são muito parecidas. Precisamos de proporcionalidade. Precisamos de mais gente para dizer que estamos mais equilibrados. Estamos dando passos, mas eles precisam ser mais largos.
Seu figurino é bastante elogiado. Você participa da escolha das roupas?
Quando ficou decidido que eu seria a jornalista que cuidaria da previsão, a figurinista olhou meu biotipo e disse: “Olha, acho que dá pra investirmos nos modelos da Michelle Obama, que usa o ombro aparecendo, e dá para investir em cor, porque contrasta com a pele negra”. Costumo dizer que olhamos para o tempo e acertamos na moda também. A pergunta que eu mais ouço, depois de “Como vai ficar o tempo?”, é “Onde você comprou suas roupas?”. E escolhemos de comum acordo. A figurinista Mari Saldanha percebeu o ponto forte, investiu nele e deu certo. São roupas emprestadas de loja. Elas trazem, eu experimento, escolho as que batem com o meu estilo e uso no ar. Algumas delas eu compro e ficam para mim, uso fora da TV.
Como você aproveita seu tempo livre?
Tenho alguns hobbies. Eu faço yoga, e isso é minha válvula de escape. Também gosto de dançar, mas não na balada. Eu danço em casa comigo mesma, sozinha. E gosto ir ao cinema e logo a um café na livraria e ficar lá, lendo revistas e livros. Tenho uma vida muito simples e comum. Gosto do cotidiano, de levar a roupa na costureira. Essa é a vida que eu gosto. Quando estou de folga, adoro dormir, ler, nadar, ir ao cinema e curtir quem eu amo (Maju é casada com o publicitário Agostinho Paulo de Moura).
E você tem conseguido fazer isso?
Agora, não tanto. Se vou para os lugares, sou assediada, e sempre procuro atender as pessoas, por isso está mais difícil. É o lado B dessa exposição: fazer as coisas de que gosto já não é mais tão comum, como quando eu ia na Rua Augusta, que tem os cinemas mais alternativos. Antes, eu ia de boa, e agora não é mais tão de boa assim. Busco manter uma vida normal na medida do possível, pois quando se tem uma exposição, às vezes parece que você está dentro de um filme. Neste ano (2016), não fiz muito isso porque estive muito focada em escrever o livro. Mas estou retomando aos poucos essa vida.
Quais são os seus desejos para 2017?
Desejo um país e um mundo mais respeitoso e mais compartilhado. Acho tão legal essa coisa de compartilhamento na internet, de você estar aqui e alugar a casa de um cara lá na Espanha por um preço mais acessível do que o de um hotel. É muito legal, mas exige respeito e integração. Gosto de acreditar que o mundo pode ser assim, apesar das aberrações que a gente vê às vezes. Um mundo com mais respeito, justiça, compartilhamento e solidariedade é o que eu desejo para sempre, para todos os anos.
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