Débora com as companheiras de trabalho Andréa ao lado da filha de três anos e da mãe Andréia e a filha, Letícia
Débora Gonçalves tem 32 anos e se mostra disposta ao trabalho mesmo no fim do expediente de uma sexta-feira. Ela não transparece, mas naquele dia acordou às 4 horas da manhã, como faz na maior parte da semana, para ir de Joinville até Curitiba (são 140 quilômetros) fazer mais uma sessão de radioterapia. A viagem de ida e volta antes de iniciar a função de analista de desenvolvimento organizacional de uma grande empresa da cidade faz parte da rotina dela nos últimos tempos e deve ter fim ainda neste mês.
É preciso coragem para enfrentar a notícia e o tratamento do câncer de mama. Mas Débora e as outras duas personagens desta reportagem – Andréa Batista e Andréia Severino – compartilham o mesmo sentimento: tornaram-se mulheres mais fortes. Hoje, conseguem ver e valorizar mais facilmente as pequenas belezas da vida.
As três tinham menos de 40 anos quando receberam o exame positivo. A notícia foi ainda menos esperada por elas porque as três não tinham casos semelhantes na família. Mesmo fora dos principais fatores considerados de risco, elas levaram a sério a alteração que sentiram ao tocar nas mamas e buscaram ajuda. O diagnóstico precoce põe Andréa, Débora e Andréia em uma posição privilegiada entre os casos da doença registrados em todo o mundo. Quanto mais cedo o diganóstico, maiores as chances de cura.
A estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca) é de que surjam aproximadamente 54 mil novos casos no Brasil só neste ano e cerca de 4% deles ocorram em mulheres com menos de 40 anos.
– A incidência do câncer de mama vem aumentando no mundo todo, em todas as faixas de idade, lenta e progressivamente, por isso há mais casos também em mulheres jovens – explica o cirurgião mastologista Fabrício Morales Farias.
Mesmo sendo a menor fatia de diagnósticos, o câncer em mulheres jovens chega, muitas vezes, rompendo sonhos. Num dos momentos mais produtivos profisisonalmente e rico afetivamente.
Em comum, estas três mulheres também contaram com apoios que as fortaleceram durante o tratamento. Andréa teve a mãe, Tarcília, como base de sustentação. Débora contou com a compreensão incondicional dos colegas de trabalho. Andréia teve a filha Letícia como aliada para voltar a se sentir mais feminina. E entre elas, também houve companheirismo mútuo. As três fazem parte do Amigas de Lenço, grupo criado no ano passado por mulheres que enfrentam a doença.
A falta de informação continua sendo o principal vilão da luta contra o câncer de mama. Ao contrário das entrevistadas, a maioria das mulheres chega ao tratamento em estágios avançados da doença.
– No Brasil, ainda não diminuímos o índice de mortalidade da doença. O diagnóstico continua sendo, na maioria dos casos, em fases mais avançadas. Mas estamos começando a melhorar. Para isso, o diagnóstico em fases iniciais é importante, e a mamografia é o exame que pode mudar isso – alerta o médico Fabrício.
Segundo ele, campanhas como a do Outubro Rosa têm contribuído com a conscientização.
– Faltam informação e mais campanhas para as mulheres. E falta, também, a consciência de que devemos assumir a responsabilidade pela nossa saúde.
MISSÃO MAIS QUE CUMPRIDA
A luta de Débora contra o câncer de mama é recente. A analista sentiu um nódulo na mama esquerda quando fazia o autoexame durante o banho, em janeiro deste ano. A descoberta inesperada não a assustou de início, já que não tinha histórico de câncer de mama na família, nem estava na faixa etária de risco. Débora confiava que não se tratasse de nada grave, mas fez o que toda mulher cuidadosa faria: procurou um médico já no dia seguinte.
Após os exames, Débora descobriu que o câncer estava nas duas mamas. A primeira decisão que ela precisou tomar foi garantir que um dos grandes planos que tinha para este ano, o de ser mãe, não fosse prejudicado. Ela foi orientada pelo médico a coletar óvulos antes que o tratamento começasse.
– Foi tudo muito rápido. Eu só tinha duas semanas para retirar os óvulos.
Felizmente, Débora apenas adiou o sonho de ser mãe. O mesmo não aconteceu com o restante dos compromissos profissionais que Débora fez questão de dar continuidade após a cirurgia dupla de retirada e reconstrução das mamas e o início da quimioterapia. Ela não quis se afastar do trabalho, não só pelo projeto importante que estava liderando nas unidades internacionais da empresa, mas porque acreditava que ficar em casa não a deixaria melhor.
– Não era uma obrigação. Eu sabia que se ficasse ruim, poderia ir embora e todos iriam entender.
A proximidade com os colegas de trabalho durante os oito meses de tratamento tem sido renovadora para Débora. Todos abraçaram a luta dela, tanto que, na finalização do projeto, as colegas envolvidas usavam bandanas e camisetas com a frase que virou jargão após o filme Tropa de Elite: “Missão dada é missão cumprida”, e o símbolo do Outubro Rosa. Foi uma grande surpresa para Débora.
O cabelo de Débora já começou a crescer, mas ela não abre mão de seus lenços. E são dezenas os que ela adquiriu neste período. A dificuldade de achar estampas que combinassem com o seu bom humor levou a analista a criar seus próprios modelos. Alguns ganharam até faixa de cintura para combinar.
A doença também fez Débora colocar em prática um projeto social. Hoje, é uma voluntária do setor de oncologia do Hospital Infantil de Joinville, arrecadando alimentos para as famílias dos pacientes mais carentes. Até agora, ela já distribuiu 600 quilos.
– Hoje, eu vejo a vida de outra forma. Passei a dar valor para as pequenas coisas.
COLO COMPARTILHADO
Uma carreira começando na área contábil, os preparativos para o casamento e os planos de engravidar. Tudo isso ficou para segundo plano quando Andréa Batista, 40 anos, descobriu o que parecia improvável: estava com câncer de mama aos 27 anos. A doença, apesar de grave, era praticamente desconhecida por ela. Talvez por causa disso, a ficha tenha demorado para cair ao identificar uma bola na mama direita após sentir fortes dores no peito.
– Há 14 anos, quando descobri o câncer de mama, não tinha noção do que iria passar. Hoje, as informações sobre a doença são mais conhecidas e divulgadas.
No mesmo dia em que recebeu o diagnóstico, Andréa também soube que teria de passar por uma cirurgia para a retirada total da mama afetada e, por isso, começar de imediato uma série de exames. A mãe, Tarcília de Almeida Silva, 62 anos, foi a primeira a receber a notícia pelo médico e quem a acompanhou por todo o processo. O apoio materno é somado a outros dois fatores que hoje Andréa acredita terem sido fundamentais durante os sete meses em que enfrentou quimioterapia e radioterapia: o plano de saúde e a Rede Feminina de Combate ao Câncer de Joinville.
– No mesmo dia em que descobri tudo, meu irmão encontrou um estande da Rede Feminina em um shopping e me levou até lá para conversar com as voluntárias. A conversa com elas foi como se, de repente, eu começasse a ver uma luz no fim do túnel. Saí de lá diferente, mais calma, para prosseguir os exames e enfrentar a doença.
Além de todo o tratamento agressivo que a afastou do trabalho, Andréa teve de conviver com a falta da mama operada durante três anos, até que o quadro da doença estivesse estabilizado. O noivo Diovane, hoje marido, não desgrudou da amada durante o percurso crítico. Eles se casaram um ano depois da descoberta do câncer.
A cirurgia para a reconstrução da mama foi outro desafio para a recuperação de Andréa. A parte retirada foi refeita com gordura e músculo do abdômen. Foram dias de repouso e dificuldade para se movimentar. O mamilo foi reconstruído só depois de seis meses.
Andréa tinha voltado a se sentir completa com a reconstrução do seio, mas as dores que pareciam pós-cirúrgicas persistiam. Desconfiada de que o incômodo não fosse resultado apenas da reconstrução, ela solicitou exames ao médico e um novo diagnóstico pegava a família de surpresa: metástase óssea na caixa torácica, uma espécie de tumor nos ossos. O pesadelo recomeçou com uma nova cirurgia, agora para a retirada do osso esterno e substituição dele por uma espécie de tela, e o tratamento inevitável de químio + rádio.
– Pensei: vou fazer o quê? Desistir de viver depois de tudo o que eu já passei?
O apoio que Andréa encontrou da primeira vez também foi fundamental no segundo processo, mais agressivo do que o primeiro – enquanto Andréa não chegou a perder o cabelo nas quimioterapias para o câncer de mama, desta vez teve que aderir aos lenços.
– Depois de tudo isso, me tornei uma mulher mais forte. Hoje, não é qualquer coisa que me abala.
Quando a família estava fortalecida após os dois cânceres de Andréa, todos foram surpreendidos mais uma vez pela doença. Agora, era a mãe, que tanto deu apoio à filha, quem estava na posição inversa. Em 2007, ela encontrou um nódulo na mama esquerda e precisou retirar um quadrante.
– Quando a minha filha descobriu o câncer, eu me perguntava por que estava acontecendo com ela e não comigo, que era mais velha – conta a mãe.
A experiência ao lado da filha ajudou Tarcília a ver a doença como outra qualquer e, acima de tudo, confiar na eficácia do tratamento.
Após vencer dois cânceres e apoiar a mãe em seu tratamento, Andréa, na época com 38 anos, achava que era a hora de cuidar da família que tinha construído com Diovane. O plano de ter filho havia sido adiado por causa dos tratamentos e por ter passado por duas baterias de quimioterapia. O risco de não poder mais engravidar era alto e seu médico desaconselhava a tentativa. Mas a vontade de Andréa e Diovane serem pais era mais forte. Decidiram tentar uma única vez. Foi suficiente para o teste de gravidez dar positivo e vir ao mundo Djovana, hoje com três anos.
EM PAZ COM O ESPELHO
O cabelo ganhou um corte novo muito diferente do que Andréia Severino, 37 anos, costumava manter. Ela ainda está se acostumando ao estilo curtinho, levemente ondulado, que contrasta com os longos fios lisos que chegavam até a cintura há um ano. A maquiagem, aliada na recuperação da aparência da técnica em enfermagem no ano passado, não foi posta de lado após o tratamento. Mais vaidosa do que nunca, Andréia aprendeu durante a quimioterapia e a radioterapia que a autoestima tem papel importante na recuperação.
O nódulo na mama direita foi descoberto em fevereiro do ano passado, durante o banho. Funcionária de uma farmácia, Andréia sempre foi muito atenta à saúde e mantinha a visita ao ginecologista semestralmente. A descoberta a levou diretamente a um mastologista. O médico a alertou sobre os 25% de chance de ser câncer, mas Andréia desacreditava na possibilidade. Ela só desconfiou da própria intuição quando o médico a chamou para contar o resultado do exame uma semana antes do combinado.
– Fui sozinha ao médico. Queria poupar meu marido (Rodrigo) e minha filha (Letícia) – lembra.
Ela começou fazendo sessões de quimioterapia na tentativa de que o câncer reduzisse, mas o processo de mastectomia (retirada da mama) foi inevitável. Andréia acabou trocando a mama afetada por uma prótese.
O mais doloroso para ela foram as reações causadas pelo tratamento. Os cabelos, xodós da técnica em enfermagem, começaram a cair e até o cachorro da família, o Fred, não a reconhecia, latia o dia inteiro para a dona. O marido foi quem raspou a cabeça dela, porque Andréia teve vergonha de ir ao salão de beleza. Rosto, pés e mãos ficaram sensíveis devido aos fortes medicamentos e, por sete meses, ela mal conseguia sentir o gosto dos alimentos. O espelho enorme no corredor do apartamento nunca foi tão evitado.
Na passagem pela fase de estranhamento, o apoio de Letícia, de 16 anos, foi decisivo. Era a filha que ajudava a mãe na maquiagem, refazendo cílios e sobrancelhas perdidas. Letícia também selecionava as combinações de lenços, adereço que a mãe aprendeu a explorar com a ajuda de outras integrantes do Amigas de Lenço, grupo de apoio formado por mulheres que enfrentam ou já enfrentaram o câncer de mama.
– Ter contato com outras mulheres na mesma situação que eu ajudou muito. O grupo começou pequeno e hoje está enorme. Nos encontramos mensalmente para um café e trocamos experiências. Brinco que antes de conhecê-las eu parecia uma pirata usando o lenço.
Com a ajuda da filha, a compreensão do marido e a força compartilhada no Amigas de Lenço, Andréia concluiu o curso de técnico em enfermagem, que havia começado antes de descobrir a doença. Enquanto os outros alunos faziam estágio, ela escrevia o trabalho final em casa. O restante do tempo em que ficou afastada do emprego foi ocupado com trabalhos manuais, que resultaram em peças em madeira espalhadas pela casa.
– Hoje, eu vivo um dia de cada vez. Não faço planos a longo prazo. Meu marido e eu sempre quisemos ir para o Chile, conhecer a neve, e resolvemos não adiar mais. Foi nossa primeira viagem internacional.