Foi muito divulgado. No interior do Rio Grande do Sul, um homem atirou sete vezes na namorada, durante uma briga, e acertou cinco tiros. A moça foi socorrida e sobreviveu.
No dia do julgamento, a vítima dava seu depoimento quando, de repente, pediu licença ao juiz, aproximou-se de seu agressor e, de forma totalmente inesperada, tascou-lhe um beijão na boca. Um beijo apaixonado. No dia seguinte, a foto estava estampada no jornal e todos nós de queixo caído.
Nas redes sociais, os palpites resumidos de sempre. "Síndrome de Estocolmo." "Desserviço ao feminismo." "Ignorância." "Cavando a própria sepultura." Etc, etc. Os psicanalistas foram chamados a explicar. Lembraram que antes de acontecer uma violência física, há um longo período de violência psicológica que estraçalha a autoestima da vítima: ela acredita que não será ninguém sem o amor daquele homem. Por não conseguir se libertar, fantasia que o amor será mais forte e salvará a relação no final.
A foto perturbou a mim e a todos, pois escancara o quanto somos frágeis e trazemos desejos submersos, originados sabe-se lá por quais desvios".
As estatísticas estão aí pra quem quiser ver. O perdão não vai salvá-la. O amor não vai salvá-la. Ela morre no final.
A foto perturbou a mim e a todos, pois escancara o quanto somos frágeis e trazemos desejos submersos, originados sabe-se lá por quais desvios. A gente se esforça para manter uma versão ajustada de si mesmo, para entregar à sociedade um perfil que seja condizente com o que se espera de um cidadão sensato, e até que nos saímos bem: ninguém costuma desconfiar das nossas fraturas emocionais e suas consequências.
Só dentro de casa, protegidos dos olhares e do julgamento alheio, é que liberamos nossas carências, traumas, fetiches. Entre quatro paredes, nossos sentimentos ocultos e contraditórios ganham permissão para conviverem. É quando a raiva e o amor deitam-se na mesma cama, o ódio e a compaixão sentam-se à mesma mesa, a dor e o prazer dão-se às mãos no sofá.
Somos perversos e adoráveis, somos amorosos e cruéis. Mas temos uma natureza preponderante, essa que postamos no Facebook e no Instagram, essa que nos acompanha ao escritório, nas ruas, no shopping. Somos reconhecidos como pessoas perfeitamente adequadas, equilibradas. Poucas são as testemunhas oculares das nossas convulsões internas, quase ninguém conhece a fundo nossas contradições.
O brutal pode vir acompanhado de extrema excitação. É a contradição que a moça agredida revelou às claras, sem nenhuma espécie de censura ou pudor. Ela despiu-se das camadas que revestem nossa pretensa normalidade e deixou a plateia perplexa e, ao mesmo tempo, embaraçada. Exibiu sua instabilidade para as lentes dos fotógrafos, demonstrou o efeito tirânico de uma relação abusiva para os jurados e para quem mais quisesse ver - só que nunca queremos.