Em 1993, Martha Medeiros havia interrompido a carreira na publicidade por alguns meses para acompanhar o marido em um trabalho no Chile. Lá, recebeu a visita de um amigo de infância que trabalhava em Zero Hora. Sem maiores expectativas, deixou que ele levasse textos seus na mala para apresentar ao seu editor-chefe.
Esse efeito borboleta que transformou uma publicitária em cronista com livros que ultrapassam as 60 edições continua encantando a autora. Outro deles se deu recentemente: a esposa francesa de um cineasta compra um livro de Martha para aprender português e ele vê, em uma das crônicas sobre um casal de idosos isolados do mundo, o embrião de um filme.
De repente, Martha se vê dedicando um ano a escrever um roteiro para cinema e, a partir dele, um livro de ficção. Aos 56 anos, prestes a lançar um novo livro de crônicas – Quem Diria que Viver Ia Dar Nisso (Editora L&PM) –, que se encerra com o balanço de realizações muito além das expectativas, Martha recebeu Donna para um longo papo sobre uma vida de constantes surpresas e mudanças – de opinião, de relacionamentos e quem sabe até de carreira.
Acompanhando sua coluna semanalmente, a gente vem percebendo algumas mudanças. Uma curiosidade por novas experiências, posicionamentos em alguns temas que você não costumava abordar, algumas mudanças de opiniões... É só impressão nossa?
Pois é. Acontece que eu mesma não sei mais direito o que penso sobre certos assuntos. Acho que o mundo está dando um looping violento, está mudando muita coisa muito rápido. Muito em razão de redes sociais, que imprimiram outra velocidade para tudo. Eu me pego questionando coisas que pensava antes. Então, acho que tu tens razão nisso. Não sei até que ponto eu tenho uma ideia fechada sobre alguma coisa. E, mesmo quando fecho, deixo uma janela aberta para mudar de ideia. E tem o lado pessoal também, né? Quando comecei a escrever, era uma mulher casada e tinha duas filhas pequeninhas. Eu tinha uma visão de mundo do casamento, da maternidade... Hoje eu estou divorciada há bastante tempo, tenho outras relações, as filhas adultas... Impossível que eu tenha as mesmas opiniões. O mundo mudou, eu mudei. O mundo está no gerúndio. Do que eu pensava há 20 anos, algumas coisas permaneceram, e outras não. Mas fica o registro da passagem do tempo. Único problema é que o livro documenta, né? Não posso negar o que foi dito. Aí o jeito é dizer: mudei de ideia.
Houve algum grande arrependimento?
Não tão radical, mas tenho alguns, sim. Por exemplo, uma coisa boba. Quando comecei, não achei que aquilo ia durar muito. Achava que aquilo de uma publicitária escrevendo coluna de jornal era só uma experiência, uma aventura. Eu falava de tudo, chutava baldes, falava de pessoas públicas. Aí, acabei virando colunista d’O Globo e hoje eu cruzo muito com pessoas de quem eu já falei mal. Às vezes, até preciso conviver com elas, conversar em festas. E as minhas colunas estão em livros, meus desaforos estão documentados! E eu fico: “Puta que pariu, tomara que ela não tenha lido (risos)!”
E sobre opiniões, você lembra de alguma mudança significativa?
Por exemplo, falando uma coisa bem pontual: Dia da Mulher. Lembro de escrever coisas rejeitando essa data. Que era desnecessária, até discriminatória. Hoje, estou achando ela supernecessária em função do novo fôlego que ganhou o movimento feminista. Aí, eu digo: “Não, esse Dia da Mulher, especificamente, é interessante.” Porque a gente está abordando essas histórias todas de assédio e tudo mais. Então, é isso. Não amarro muito as minhas ideias a ponto de eu não permitir que elas respirem. Procuro ter uma visão mais espalhada sobre tudo isso. Ver lados bons e ruins, prós e contras, e não escolher um lado. Acho que é isso: não me sinto intimada a ter um lado.
Mas a própria questão do feminismo é algo que você tem questionamentos, não é?
Antes de mais nada, deixa eu dizer que é um movimento histórico. Tem que acontecer, é supernecessário. Eu já acho que virou um papo chato. Mas tem que ser chato. Tudo que é insistente é chato. Mas tem que ter essa chatice porque não é qualquer coisa que precisa mudar, é uma mudança de mentalidade, de cultura, não é fácil. Nesse ponto, entendo que tenha que falar muito, que tenha uma adesão maciça. Por outro lado, ele não pode comprometer o jogo erótico. Por exemplo, a história da Catherine Deneuve (que, junto com intelectuais francesas, assinou um manifesto com questionamentos ao movimento #TimesUp). Enquanto todo mundo condenou, eu entendo muito bem a carta dela.
O que você leu ali que fez sentido?
Quando ela diz que a “liberdade de importunar é indispensável à liberdade sexual” o que ela está querendo dizer é que ela quer ter liberdade de reagir do jeito dela às provocações. De repente, eu tenho dentro de mim a ativista e a fetichista, a durona e a submissa, acho que as coisas estão muito preto no branco, e o ser humano não é assim. Ele é contraditório. Uma mulher, nossa, tem um harém dentro dela! Eu tenho que ter a liberdade de agir conforme as circunstâncias. Se eu não deixar as circunstâncias acontecerem... E isso não tem nada a ver com crime. Nada a ver com abuso. Tem a ver com o jogo erótico, esse jogo da sedução que pressupõe um “predador” e uma “vítima” entre aspas. Eu estou no controle, tenho a liberdade de fazer esse papel. Se eu quiser. Acho que está se falando pouco disso. E também que ninguém está perguntando nada aos homens. O que eles pensam sobre isso, como isso muda a reação deles. Eles estão sendo vistos como inimigos em potencial, e não estou vendo nenhum tipo de abertura para a opinião deles.
Mas você enxerga desdobramentos ruins disso?
Um leitor me mandou uma história que achei muito interessante. Ele ia atravessar uma avenida, teve uma tromba d’água e viu uma mulher ao lado sem guarda-chuva. Ele naturalmente ofereceria uma carona no guarda-chuva até o ponto de ônibus do outro lado, mas ficou constrangido. Ele disse: “Foi a primeira vez que eu me senti reagindo a esse momento”. Ele ficou com medo inclusive da reação das pessoas na parada. Perguntei: “E aí, o que você fez?”. Ele disse: “Bom, eu concluí que faria isso para um homem e ofereci a carona rapidinho”. A mulher, segundo ele, aceitou sem olhar para a cara dele, não agradeceu e, ao chegar perto, saiu correndo em direção à parada. Ele ficou com medo dela, ela ficou com medo dele em uma trivialidade que sempre foi algo natural. Aí, eu me pergunto: será que nós já estamos começando a reprimir algumas interações naturais? Nesse caso, acho que era só uma gentileza. Mas, e se ele cantasse ela também, qual é o problema? Então, é um exemplo pequeno, mas de como a gente pode ficar em um mundinho meio xarope.
Justamente por serem recentes, você não acha que esses comportamentos vão encontrar, logo mais, um ponto de equilíbrio?
Acho que sim. Tem um lado maravilhoso. Eu acho bárbaro o discurso da Frances McDormand (na cerimônia do Oscar), por exemplo. É uma comoção ver as mulheres se levantarem para dizer “É a nossa vez”. Acho necessária essa gritaria agora para uma mudança de mentalidade mais adiante. Mas ainda quero escrever algo sobre essa história do guarda-chuva.
Às vezes, temos a impressão de que bastante gente pensa de uma forma, mas não se manifesta justamente porque a repercussão imediata é muito forte e virulenta. A sua bagagem dá mais respaldo para mexer nesse tipo de vespeiro? As pessoas respeitam mais você?
Será que alguma pessoa ainda tem esse respaldo? Quando vejo as pessoas xingando o Chico Buarque no meio da rua, desrespeitando Caetano Veloso, pessoas muito e muito acima do que eu já fiz na vida... Acho que as pessoas não respeitam mais ninguém. Mas concordo que sou pouco espancada. Acho, sim, que as pessoas me respeitam um pouco, mas também não leio muito. Não entro em site pra ler comentário. E-mails, pouca gente ainda escreve, mais pessoas um pouco mais velhas. Eu sou respeitosa com as pessoas. Tenho um comprometimento com uma certa elegância. Não sou chutadora de baldes. Por ser do jeito que eu sou, as pessoas talvez me preservem. Porque eu também não ataco. Se ataco, é apenas com as ideias que eu tenho.
Pessoalmente, as pessoas abordam você? Dão retorno das crônicas?
Sim, me abordam muito. Às vezes, falam de crônicas que eu não faço ideia de quais são, nem sei se são minhas (risos). A gente acaba lembrando os episódios mais drásticos. Uma vez, uma menina me parou e disse: “Eu vou te parar no meio da tua caminhada, mas é porque é sério. Eu tentei cometer suicídio, e o que me segurou foi uma crônica tua. Percebi o que estava fazendo com a minha vida e mudei completamente”. Corri pra casa pra ver o que eu tinha escrito, e, para mim, era uma crônica como outra qualquer. Mas para aquela menina caiu em um momento-chave da vida. Então, isso acontece. Escrever algo despretensioso, e aquilo ganhar um grande significado pra alguém. Assim como algumas pessoas se ofenderem mortalmente quando se decepcionam com a tua opinião. Aí, vejo o poder da crônica, porque é um papo muito íntimo. É como se fosse um amigo, uma pessoa da família. Até convite pra churrasco eu recebo (risos).
E você está tranquila nesse formato?
Tranquila, não. Comecei recentemente a fazer mil outras coisas que estou adorando: roteiro de cinema, de teatro (leia mais sobre os novos projetos de Martha, abaixo da entrevista). Vou manter as crônicas porque eu tenho uma superfidelização de leitores que acho importante, mas já diminuí a frequência para ter tempo de fazer outras coisas. Não quero ficar alheia a todas as movimentações, a todas as possibilidades de divulgar trabalho, de divulgar ideias. Eu já fui muito mais refratária a tudo isso: “Deixa eu no meu cantinho, está dando certo assim”. Até por idade também, preciso me renovar. Algumas pessoas estão me ajudando: me dizem “Vamos sair dessa letargia aí porque tu tens um público superlegal e isso é um patrimônio. Mas precisa se mexer”.
Ter feito uma tatuagem, recentemente, vem ao encontro dessas mudanças todas?
Então, fiz mesmo, está aqui (mostra o sol tatuado na nuca). Talvez seja simbólico, sim. Que estou a fim de fazer coisas que nunca fiz na vida.
Você lembra que tinha escrito sobre tatuar um sol há quase 10 anos? Era uma coluna sobre a tatuagem de uma de suas filhas, sobre um ex-namorado seu que tatuou a letra “M” em homenagem a você...
Eu escrevi isso? Não acredito que fiz isso! Deixa eu ver (pegando o papel da mão e lendo). Você fez um trabalho arqueológico (risos)! Ai meu Deus, por que a gente escreve?! Pois é... Mas você vê: no fim, lembro das que acabei colocando em livro, essa eu não coloquei. Graças a Deus!
Me chamou muito a atenção a crônica que dá nome ao seu novo livro. Esse balanço que você faz da vida...
Sabe que o título veio antes da crônica? Me veio um dia à cabeça essa expressão: “Quem diria que viver ia dar nisso?”. Pensei que seria legal uma crônica com esse nome encerrando o livro e olhando para trás. Se alguém me encontrasse criança e dissesse o que iria acontecer na minha vida, eu responderia: “Pirou?”. Eu era o azarão de todas as apostas. Não era a popular da escola, me achava a guria mais feia que podia existir no mundo, ninguém me olhava... Não me sentia inteligente, me sentia uma burra que não sabia falar com as pessoas. Só lia, lia e lia trancada no quarto. Não previa nada de muito bacana para mim. Para mim, ser escritora era como uma menina que sonha em ser a Gisele Bündchen. Via isso como uma utopia. Algo absolutamente impossível. Não que eu me considere espetacular, mas vivo disso. Tenho um monte de livros. As pessoas gostam. A vida que vivo hoje está muito além das expectativas. Cada dia é um assombro, você viu a crônica desta edição?
Só espiei que era sobre um acidente de trânsito...
Pois então, foi uma puta de uma batida! Os dois carros ficaram desmontados. E eu não me feri nada. Meu espírito é esse: eu acordo achando que nada de especial vai acontecer naquele dia e, ao meio-dia, estou na esquina chorando com o carro desmontado. Eu acho isso sensacional, mesmo quando a coisa é negativa. O fascinante da vida é não ter ideia do que esse telefone pode tocar e me dizer. Um pontapé para algo completamente novo. Um amigo jornalista, Fernando Eichenberg, resolve me visitar no Chile, em 1993, e leva uns textos meus para o editor do jornal em que ele trabalha. E se eu não tivesse ido morar no Chile com o marido? Talvez fosse publicitária até hoje. A esposa francesa de um cineasta gaúcho compra um livro meu para aprender português e, de repente, posso virar roteirista de cinema. Acho sensacional não ter controle sobre nada.
AS NOVAS MARTHAS
Martha roteirista de cinema
“Recebi o email de um gaúcho cineasta que mora em Londres há muito tempo. Ele tinha lido uma crônica minha e achou que ali havia uma fagulha que poderia gerar uma história. Perguntou se eu concordava com ele. Nem sei se concordava, mas estava tão a fim de fazer que resolvi topar. Achei que seria uma coisa curta e no fim me tomou um ano. Realmente rendeu: é uma história muito interessante, que foge um pouco dessas comédias românticas com as quais o pessoal costuma me identificar. Não é isso. É uma história um pouco mais introspectiva, mais psicológica, e eu acho que funcionou. Se desse roteiro não sair um filme, certamente sai um livro de ficção.”
Martha roteirista de teatro
“Tenho uma peça de teatro também. Tudo o que saiu inspirado em textos meus até hoje foram adaptações. Eu só sentava lá pra ver o que saiu. Resolvi tomar um pouco do controle disso. Está bem bacana. Já tem um esqueleto todo montado. Já tem uma atriz carioca muito legal interessada. Acho que pode rolar também. Projeto todo mundo tem, viabilizado é outra conversa. Mas
estou otimista.”
Martha Youtuber
“Existem outros projetos pela frente. Eu estou com esse ânimo de me testar em coisas novas. Agora, tenho recebido convites para produzir um canal no YouTube. E não sei, eu ainda vou fazer umas reuniões, ainda é bem embrionário, mas estou aberta a fazer essa tentativa.”
Martha nas redes sociais
“É uma coisa que todos estão acostumados e, para mim, ainda é uma novidade. O Facebook está quase obsoleto, e eu entrei há três anos. No Instagram (@realmarthamedeiros), há cinco meses. O lado bacana é o contato com os leitores, eles curtem à beça. Fico meio aflita, confesso. Porque eu reconheço que é uma egotrip. Tudo é meio autopromocional, mas resolvi me render.
Vamos nessa.”
Martha tatuada
“Fazer uma tatuagem foi um sintoma desse meu estado de espírito. Tatuagem é uma coisa interessante porque sempre se defendeu não se tatuar porque era definitiva demais. A gente está vivendo uma época em que nada é definitivo. Então, o defeito da tatuagem passou a ser a qualidade. Pelo menos isso vai ficar comigo até o fim. Comigo para sempre.”
Martha em inglês
“Pela primeira vez, vou ter um livro traduzido para o inglês! Na verdade, é uma vaidade boba, porque até tenho livros traduzidos em francês, italiano, e isso não muda nada na vida de ninguém. Não vende nada, é só pra decorar o nosso currículo (risos). Mas em inglês, especialmente, eu estou curiosa para ver o que acontece porque vão ser crônicas, que não são um formato muito tradicional por lá. Então, acho que vai ser uma coisa diferente, e tenho uma paixão por Londres – a editora é de lá. Acho que, até o final deste ano, o livro sai.”
Livro: “Quem Diria que Viver Ia Dar Nisso” Editora L&PM R$ 39,90
Lançamento com sessão de autógrafos: 5 de abril, às 19h - Livraria Saraiva Moinhos Shopping
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