Passei os últimos dias ralhando com minha imagem no espelho: que porto-alegrense fajuta é você? Há 35 anos, a pianista Ivone Pacheco fundou o Clube de Jazz e eu, que em diversas cidades do mundo já me infiltrei em bares enfumaçados, botecos, microteatros e demais esconderijos secretos onde se toca boa música, simplesmente desconhecia o que acontecia embaixo do meu nariz. O mistério faz parte da mística do evento, mas contarei um pouquinho para os desavisados como eu.
Noite de sábado. Uma casa escura numa rua pouco iluminada. Uma passagem lateral. Você entra como quem comete invasão de domicílio. Silêncio. O muro que conduz ao pátio dos fundos está grafitado. É, acho que é aqui.
Começam a chegar outras pessoas. Uma confraria. As portas do porão estão abertas. Lá dentro, algumas cadeiras descombinadas em frente a um pequeno espaço onde há um piano, uma bateria, microfones, alguns pôsteres de New Orleans colados nas paredes negras, um lustre vintage. E então surge um cara de terno e gravata com o mesmo charme de John Pizzarelli e a magia começa, sem "senhoras e senhores", sem ingresso vendido, sem cachê pago, sem lugar marcado, sem playlist, sem "desliguem seus celulares", sem a distância habitual entre quem faz e quem escuta. O cara canta três ou quatro músicas, depois dá lugar a um trio de blues, a duas cantoras de bossa nova, a nomes conhecidos e desconhecidos da noite gaúcha, maestros, pianistas, roqueiros.
A dama Ivone Pacheco, aos 85, barbariza tocando Summertime e outros standards, uma garota linda de cabelo verde toca baixo e canta alto, solos de guitarra, gaita de boca, improvisos, jam sessions num revezamento ininterrupto.
Ali fora, no pátio, pra quem deu uma escapadinha pra fumar ou papear, rola uma fogueira, um quentão, um pinhão, um São João também improvisado em agosto, e você se dá conta de que há quatro horas mantém um sorriso bobo no rosto por estar no ambiente certo e ao lado do homem certo, que te conduziu pela mão até essa simplicidade e sofisticação: uma reunião despretensiosa onde se celebra a música de forma não comercial, e sim emocional e espontânea. Assim foi a mais recente edição do Clube de Jazz Take Five de Ivone Pacheco, do qual tanto eu ouvia falar como quem ouve falar da lua cheia sem levantar os olhos para o céu.
Tem mesmo que ser como é. Sem endereço divulgado, sem banalização, atraindo apenas os amantes da sonoridade mais pura, abrindo espaço para artistas que se divertem com o que fazem, gente que se comunica através da corda do violoncelo, das teclas bicolores do piano, amadores e veteranos apaixonados pelo ofício de encantar.
É a arte em sua essência: bela, generosa e transcendental. Como a lua no céu.