Estava aqui pensando no que me faz gostar tanto dos filmes argentinos. Acho que tem a ver com a sobriedade estética e a ausência de artifícios sedutores: esta "secura" casa bem com o humor nonsense. Tudo parece tão real que o atrevimento de levar algumas bizarrices adiante não parece alegórico, e sim perfeitamente aceitável e divertido. Inevitável lembrar o hilário Relatos Selvagens, mas hoje falo de O Cidadão Ilustre, com o excelente ator Oscar Martínez entrando numa roubada atrás da outra e saindo por cima: foi premiadíssimo pelo papel.
O Cidadão Ilustre conta a história de um escritor argentino que ganhou o Nobel de Literatura e que vive há 40 anos na Europa fugindo dos holofotes da fama, dos convites acadêmicos e dos assédios da mídia, mas que, contrariando sua tendência reclusa, aceita passar quatro dias na sua pequena e provinciana cidade natal, que fica no fim do mundo ou quase isso.
Era de se esperar uma turnê emotiva, mas basta aterrissar no aeroporto de Buenos Aires para que o nobre intelectual seja obrigado a enfrentar tudo aquilo do qual vinha fugindo, a começar pela paparicação exagerada, e viver alguns reencontros perturbadores com amigos da juventude, ex-namorada, desafetos e fãs sem noção – um elenco de tipos e situações que, se virassem texto, resultaria num best-seller e tanto.
Se é que não resultou.
Como saber se tudo aquilo aconteceu mesmo, sendo o personagem um escritor e, como tal, um cara meio delirante? Serão culpados ou inocentes esses seres que misturam realidade e ficção a fim de gerarem as obras que seus leitores devoram? Escritores são manipuladores? O filme é rico e bem mais abrangente do que isso, mas a questão está ali: o vampirismo literário (sobre o qual escrevi recentemente) e suas consequências.
Não existe escritor que já não tenha sido questionado sobre o que há de biográfico e o que há de invenção naquilo que escreve. Alguns tentam explicar ("a vida é a matéria-prima da qual dispomos, então claro que o autor se abastece da própria experiência, ainda que a reinvente etc., etc."), mas a resposta perfeita para a questão é: importa? A história foi entregue: vibrante, inquietante, convidando a embarcar na alma dos personagens, em suas loucuras, em seus medos, numa trama inventiva e atraente por si só. Agora olhe para aquele sujeito blasé que aparece na foto que está na orelha do livro, geralmente em pose clássica, com a mão apoiando o rosto. Importa se a ruiva bipolar que aparece na página 78 foi uma amante que ele não tira da cabeça?
Vale o que está escrito. Ilustre é o livro. O resto é fuxico.