Inspirada pelo novo programa de negociação de dívidas do governo, decidi colocar em prática o meu Desenrola particular, eu que venho acumulando débitos pela vida. O diabo é que preciso tratar disso com a pessoa que mais me cobra, eu mesma. Então fiz um café, sentei comigo e levei os assuntos para a mesa. Meu Eu que me cobra logo tomou a frente da negociação.
— O que você quer propor?
— Estou com algumas dívidas que têm me tirado o sono. Queria ver se você pode aliviar para o meu lado.
Meu Eu que me cobra ficou em silêncio por alguns instantes, depois abriu um caderninho com a capa e as páginas vermelhas, todo preenchido. Ele folheou o caderno sem pressa, lendo as notas com atenção, parando aqui e ali, sem se importar com a minha presença. Não aguentei a tensão.
— Você não pode fazer a contabilidade mais tarde?
— Estou avaliando o que tem para ser negociado. É muita coisa. Faz tempo que você vem me enrolando.
— Vamos falar só das urgências. O que venceu há mais tempo, deixa quieto. Quem sabe não são passivos que prescreveram?
Meu Eu que me cobra me olhou no fundo dos olhos.
— Tem um tipo de dívida que nunca prescreve. Você devia saber melhor do que eu.
E eu sabia. Há muito tempo, as coisas que não fiz, e boa parte das que fiz, pareciam ocupar não só o meu cérebro, mas também um espaço considerável do meu aparelho digestivo. Se eu lembrava de alguma delas, um arrepio vinha da base do meu estômago para explodir na cabeça. E não era necessário nada de muito grave para servir de gatilho. Podia ser o atraso para responder a um e-mail ou um café desmarcado em cima da hora pela minha pura falta de vontade de ir.
Meu Eu que me cobra apenas esperava, sabendo direitinho no que eu pensava. Essa era a pior parte, ele conhecia os meus pensamentos. E é evidente que se aproveitava disso.
— O caso da sua mãe, por exemplo...
Estava demorando. Com a desfaçatez de quem lança um comentário inocente, ele se referia à vez em que encontrei na gaveta um documento que, dias antes, havia jurado para a minha mãe que não estava comigo. Por causa da perda, ela pagou uma banana para um advogado resolver a questão, de jeito que mantive segredo sobre ter achado o tal papel.
— Era só contar para ela.
Meu Eu que me cobra estava requerendo a minha sinceridade, como em tantas outras ocasiões. Todas em que dei desculpas furadas por falta de coragem para o que devia fazer ou para me esconder de compromissos e responsabilidades. Nesse quesito, a lista dos meus débitos era longa.
Em todas essas, meu Eu que me cobra continuava analisando a lista. Após o que me pareceu um século, ele enfim fechou o caderno.
— Infelizmente, as suas condições não são elegíveis para o programa. Nem para amortização.
— Negociar com você é muito pior que fazer acordo com banco.
Meu Eu que me cobra não aceitou a provocação. Guardou sem pressa o caderno vermelho e se levantou para ir embora, não sem antes deixar uma palavra de esperança.
— Dependendo do seu crédito, você pode tentar novamente na segunda fase, com limites maiores.
— Eu prometo que, se você parar de me cobrar, a partir de agora eu entrego tudo no prazo e vou cuidar direito da minha família, dos meus amigos, dos meus amores. Vamos fazer um teste, uma semaninha só. Você não vai se arrepender.
Meu Eu que me cobra me encarou com olhos vazios, sentou novamente, abriu o caderno vermelho e escreveu meu juramento na última linha livre. Então levantou e se despediu.
— Até a semana que vem. Ah, me lembra de comprar um caderninho novo.