Começa com um dos debatedores atirado do sofá, vendo o Instagram no celular. A outra debatedora entra na sala.
— Jorge, amanhã eu quero o teu guarda-roupa arrumado, com tudo dobradinho nas prateleiras e nas gavetas.
— Amanhã eu tenho outras prioridades. Vou encaixar o quarto no meu plano de ação para os próximos dias.
— Vou te dar plano de ação. O teu quarto está virado em uma pocilga. A quantidade de meias sem par já passou de todos os limites. Juntei umas 12, todas duras, furadas, fedorentas. E o cheiro de cigarro, então? Tu tem coragem de fumar dentro do quarto sabendo que o teu irmão pequeno tem asma? Eu nem sabia que tu fumava!
— Mãe, em primeiro lugar, eu exijo respeito ao meu espaço. Tu deter o poder econômico nessa casa não faz de ti minha dona.
— Aqui eu detenho os meios de produção, também. Porque tu, imprestável, não é capaz de lavar um prato. Nunca arrumou nem a tua cama, quanto mais juntar esse monte de copo que deixa espalhado por aí.
— Eu estudo, não é esse o combinado? Cada qual com o seu papel, um sem interferir no lugar do outro, todos dando o seu melhor por uma sociedade em equilíbrio.
— Equilíbrio, menos no meu orçamento, com o tanto de aula particular que eu pago para tu passar a cada trimestre. Tu pegou oito recuperações, Jorge. OITO. Até de Educação Física, a única matéria que tu gostava!
— Agora eu estou mais ligado nas coisas da filosofia. Meu quarto é o reflexo do meu pensamento, é a tradução da minha preocupação com as minorias.
— Só pode estar de brincadeira com a minha cara. Minoria, naquela esculhambação, só as pulgas e as baratas. Isso se já não forem maioria.
— Eu não vou entrar em uma discussão dialética contigo.
— Jorge, custa tu arrumar teu quarto?
— Acho que nós temos as nossas diferenças mas, no fundo, queremos a mesma coisa: condições de vida melhores para todos.
— Para a tua vida ficar melhor, só se tu reencarnar como filho do Luciano Huck.
— Nós temos que nos unir contra o mal maior, que é o Seu Olavo, o vizinho do bloco B, que chutou o Fidel porque achou que a coleira vermelha dele era uma indireta comunista. Eu estou fazendo um abaixo-assinado para levar na próxima reunião de condomínio.
— O que o Seu Olavo tem a ver com o teu quarto, Jorge? Tu está fugindo do assunto. Eu quero saber a que horas tu vai arrumar aquela espelunca.
— Os guris estão me chamando para jogar Call of Duty. Depois a gente conversa.
— Vai fugir do debate? Não tem vergonha? Não honra as calças que tu veste?
— Começou a baixar o nível. Não vou aceitar provocações baratas. Fui!
— Não vai nem fazer as considerações finais?
— Preciso da minha camiseta do colégio. Se eu for sem ela amanhã, a diretora disse que eu não entro. Mais uma falta e fico de recuperação em Educação Artística também. Me ajuda a encontrar?
— Valei-me, meu Paulo Freire.
— A gente funciona melhor quando une as forças, né? Foi tu quem me ensinou isso.
— Amanhã a gente debate esse ponto. Agora tira esse tênis podre do meu sofá e baixa o volume da TV.
Encerra com Seu Olavo, no bloco B, ouvindo os tiros do videogame e chutando a parede.