Pensando em como escrever uma coluna de Natal otimista para os queridos leitores que me acompanharam neste ano, lembrei de uma cena que aconteceu depois da peça BR Trans, no Theatro São Pedro. Em um churrasco de comemoração com a equipe, o ator Silvero Pereira, acompanhado ao violão pelo músico Rafael Erê, cantou uma música que nunca mais me saiu da cabeça: Alvejante. Sim, Alvejante. Este é o título.
Faz pouco tempo que perdi o preconceito – não totalmente – com a música de sofrência. Ouvindo e lendo aqui e ali, fui conhecendo alguns artistas e aprendendo os compositores. Combinou com as minhas próprias sofrências em 2021, e olha que eu estou na lista dos que pouco sofreram, em comparação com a maioria absoluta dos brasileiros.
Ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer. De repente os versos da cantora Marília Mendonça serviram não só como trilha para a tragédia da morte dela, mas para a tragédia do país. Ops, eu falei que seria uma coluna otimista. Voltemos a ela.
Alvejante, a canção, é um típico exemplar do brega pernambucano, gênero que acaba de ser considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. No âmbito nacional, a Câmara dos Deputados reconheceu o funk como manifestação popular digna de proteção do poder público, ou seja, não dá mais para uns e outros entrarem chutando todo mundo no baile para acabar com a festa. Nessas de considerar a música característica de um lugar como patrimônio cultural, os gaúchos não estão um tanto atrasados?
Alvejante, composição de Priscila Senna cantada por ela e Zé Vaqueiro, fala de um amor que terminou só para uma das partes. Para a outra, restou o abandono, que a Priscila canta sem os lugares-comuns do gênero – e um sentimento que chega a doer.
Cê não avisou pro meu coração
Que tava passando só de visita
Que o lance ia ser passageiro
Que o a ver navio cairia perfeito pra mim
“Que o a ver navio cairia perfeito pra mim.” Pessoalmente, ela já me conquistou aí. Mas então vem o refrão.
Lavei a roupa de cama
Mas o infeliz do teu cheiro tá entranhado em mim
Dei geral na casa toda, e do coração esqueci
Fui no supermercado comprar alvejante, que o meu acabou
Mas o material de limpeza limpa a sujeira, não limpa amor
Tem aquele eterno embate sobre letra de música ser ou não poesia, e eu me considero ignorante o bastante para não ser capaz de opinar – obrigada, Gloria Pires, por libertar os que não sabem de fingir que sabem. Mas desde que a Priscila Senna fez esses versos com alvejante, supermercado e material de limpeza, ela passou a ser uma das minhas poetas preferidas. Olha ela aqui com sua voz maravilhosa de cantora de brega, de fado, de bolero, de amor:
O que tudo isso tem a ver com o Natal? Eu desejo aos meus queridos leitores que a gente consiga ver poesia em tudo, até na uva-passa. É um jeito de deixar a vida mais leve, embora todas as dificuldades. E também desejo que a terceira dose da vacina, apesar das variantes que devem continuar aparecendo, traga a saúde de que a gente tanto precisa. Feliz Natal.