Conheci o Hermenegildo, a praia mais ao sul do sul, talvez o lugar mais tranquilo onde já estive. Tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto de outras viagens. O Chuí fica a um pulinho e, depois dele, tem muita estrada para se andar.
Ou tinha. Com o coronavírus sem controle, o Uruguai seguia fechado para os brasileiros. Nada a estranhar, já que o próprio Brasil – como era de se esperar – voltou a restringir atividades e a decretar certos limites para as populações sedentas de aglomeração. Que isso aconteceria novamente, ninguém tinha dúvida. Só espantou a rapidez, um dia depois das eleições. Como se, até o anúncio dos resultados, gente junta e reunida não estivesse ameaçada pelo vírus. E ameaçando quem se cuida.
Estava quente no dia em que fui ao Hermenegildo. Na parada um pouco antes da cidade, café no posto e uma descidinha para esticar as pernas, o bafo era quase sólido.
O ventilador de teto da lanchonete, coitado, incapaz de refrescar uma mosca. Uma, vírgula. Precisaria ser do IBGE para fazer a contagem delas, soberanas no balcão, nas paredes e nos copos.
Quando o carro passou pelo acesso ao Hermenegildo, até o céu ficou diferente, de um azul mais puro. Para os lados do mar, surgiram nuvens que, até então, não tinham dado as caras. Era começo da primavera, não havia um carro na rua, uma pessoa. Já a cachorrada ia e vinha, abusada, subindo e descendo dos bancos das tantas mesinhas do canteiro da avenida principal, entrando nos jardins e nos quintais com a desfaçatez de quem se acha dono.
O Hermenegildo é ele e o nada. Não me entendam mal: o nada, ali, é tudo
O Hermenegildo, a pouco menos de 500 quilômetros de Porto Alegre, fica na sequência do Cassino e vem antes da Barra do Chuí, conjunto conhecido como a maior praia em extensão do mundo. São 220 quilômetros de areia e mar. Enquanto o Cassino tem a infraestrutura que uma cidade com muitas possibilidades como Rio Grande oferece, o Hermenegildo é ele e o nada. Não me entendam mal: o nada, ali, é tudo.
O vento gelado desencorajava o pessoal a caminhar na praia. Quem tem aquela imensidão na porta de casa pode se dar ao luxo de escolher dia e hora para encontrar o mar. O que nos levou ao Hermenegildo foi a vontade de fazer um filme. A tragédia ambiental que ficou conhecida como Maré Vermelha, em 1978, contaminou o mar e a areia e matou peixes, mariscos, animais terrestres e vegetação. A diretora Daniela Sallet contou essa história no documentário Hermenegildo, de 2019, apresentando também a versão que o governo militar, na época, tratou de abafar: a tragédia teria sido provocada por um vazamento químico – o que, avaliando-se a extensão dos danos, parece bem mais provável que a hipótese de um fenômeno natural. Nosso filme quer juntar esses fatos ao aparecimento de cadáveres da ditadura argentina no litoral gaúcho. Esse é o trailer.
O Hermenegildo, praia do município de Santa Vitória do Palmar, a 18 quilômetros dali, era só silêncio e solidão no começo da primavera. Mas um senhor palestino que tem uma loja em uma das ruas paralelas à orla nos contou que, na temporada, o canteiro da avenida central fica lotado, música saindo dos carros, moços e velhos passeando e muitas flores na estátua de Iemanjá que protege a cidade.
O sul do sul é um refúgio nesses tempos esquisitos. A poucos minutos do Hermenegildo, a Estação Ecológica do Taim abriga 11 mil hectares preservados para mais de 30 espécies de mamíferos, répteis e aves migratórias. Triste foi ver algumas áreas queimando por conta da seca, e muitas capivaras atropeladas, apesar da tela que tenta proteger a bicharada da BR-471 que passa por dentro da reserva. Quando o mundo voltar ao normal, está aí um lugar para se visitar muitas vezes.
Quem não precisa de um respiro para continuar?