E o movimento dos cantores sertanejos contra a meia-entrada? Primeira vez que se vê um movimento para afastar o público, mas esses são tempos estranhos. Tem de um tudo, como se diz no sertão das novelas de TV.
Roto & Esfarrapado, Blefe & Mequetrefe, Cuspido & Escarrado, seja lá que nome tenham os sertanejos que se prestaram a pedir o fim da meia-entrada em um evento no Palácio do Planalto, são a cara do momento nau sem rumo que vive a cultura no país.
Não que a música deles seja exatamente cultura, se me desculpam o preconceito. Mas é, de alguma forma, uma manifestação artística que atrai milhares de pessoas e enche as burras das bilheterias. Um desses cantores acaba de posar na frente de sua nova mansão em Goiás, mistura de Templo ao Deus do Mau Gosto com Igreja dos Endinheirados dos Últimos Dias. Se fosse em Porto Alegre, imagina o IPTU.
Pedir o fim da meia-entrada equivale ao artista dizer: que se exploda o público. Azar dos estudantes e dos que são protegidos por lei, por várias e justas razões, para pagar meia. Se a coisa estivesse tão frouxa quanto os sertanejos pensam, a maioria dos eventos não ofereceria a possibilidade do ingresso solidário, um quilo de alimento não perecível para diminuir o valor. Falando com artistas que talvez trabalhem a vida inteira sem ganhar o que Mão de Vaca & Mesquinho lucram em uma noite, não ouvi nenhuma reclamação sobre a meia-entrada. Ruim com ela, bem pior sem ela. A hora é de levar gente para os teatros, os shows, os cinemas.
Quem sabe um meio-termo: acaba-se com a meia-entrada apenas para os sertanejos, e leva-se o público deles, por 50% do ingresso, para shows de música popular brasileira, música clássica, jazz, samba, música instrumental, rock, funk, música eletrônica, música nativista, pop, hip hop, rap, pagode – ao menos não tinha nenhum pagodeiro naquele trem. Estava lá, meio deslocado, o Dedé Santana, que depois declarou não saber que a visita era para pedir o fim da meia-entrada.
Um trapalhão entre os espertalhões. Não deixa de ser um resumo do nosso momento.
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Janeiro foi um mês interminável para dar tempo de sair A Barata, o novo livro do autor inglês Ian McEwan. Kafka, como sempre, inspirando o pessoal. No conto também chamado A Metamorfose, Luis Fernando Verissimo propôs: "Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano". No fim do ano passado, Juremir Machado da Silva publicou Acordei Negro, em que um branco de classe média desperta com a pele preta. Até eu lancei Macha, em que uma mulher acorda transformada em homem. Agora, no momento em que o Reino Unido consuma o Brexit, Ian McEwan cria uma barata que acorda transformada no primeiro-ministro da Grã- Bretanha. "(...) Como os nomes e personagens são produto da imaginação do autor, qualquer semelhança com baratas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência."
Foi para isso que serviram as centenas de dias de janeiro: para ler A Barata em duas horas.