Estive uma vez em Brumadinho, que era também o dormitório e o refeitório oficiais dos turistas a caminho do parque de Inhotim. Sem forçação de barra: na época, chamou atenção o quanto a cidade era bucólica, parada no tempo, crianças e bichos pelas ruas, cadeiras nas calçadas, portas abertas. Em cada quadra, negócios caseiros para alimentar os visitantes e vender lembranças típicas, doce de leite, pimenta ou uma cruz esculpida na pedra. Ficamos em uma pousada dessas em que várias pequenas cabanas se espalham por um terreno de grama bem cuidada e árvores enormes. Aproveitando a proximidade com Mariana e Bento Rodrigues, as duas cidades destruídas pelos dejetos criminosos da Samarco, tentamos fazer uma reportagem. Dois anos depois daquela primeira tragédia, nada havia acontecido. Quer dizer, algo havia sido feito: os acessos estavam vigiados e não se podia fotografar, muito menos entrar. Antes de pagar indenizações e multas, a Samarco se preocupava em esconder a história.
E, então, aconteceu de novo. Até terça passada, eram 65 mortos e quase 300 desaparecidos que os bombeiros de Minas Gerais, com o 13º atrasado e os salários parcelados, continuavam procurando. A tranquila Brumadinho não existia mais. A terça começou com a TV cobrindo ao vivo a prisão dos dois engenheiros que atestaram a estabilidade da barragem. Tem que prender mesmo. Mas e quem mandou os dois atestarem, vai continuar solto?
Somos um país machucado por crimes anunciados e pela impunidade que se segue a eles. O caso Kiss é um triste exemplo. Seis anos depois da pior noite que o nosso estado já viveu, só um dos denunciados pelo Ministério Público foi condenado _ e, graças aos recursos, teve a pena prescrita. Os três bombeiros condenados pela Justiça Militar seguem recorrendo. Em liberdade. Todos os agentes públicos foram inocentados. Nenhum dos responsáveis pela morte das 242 pessoas está preso.
Talvez o nosso problema seja mesmo esse, o de considerar que o que fica pelo caminho depois de uma tragédia anunciada são apenas corpos, matéria inanimada, algo a se tirar da frente dos olhos e, redundância, enterrar bem fundo. O que não é visto, parece, não é lembrado.
Os 40 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério que soterraram Bento Rodrigues e Mariana em 2015 mataram 19 pessoas, mudaram a vida dos 500 mil habitantes da região e contaminaram o Rio Doce para sempre. A Samarco e suas controladoras _ a Vale, sempre ela, e a BHB Billiton, tratando o crime como "acidente", gastam milhões se safando nos tribunais em lugar de indenizar as vítimas. Ninguém foi preso. Das 68 multas aplicadas por órgãos ambientais, apenas uma está sendo paga _ e em 59 parcelas.
Em cada uma das grandes tragédias brasileiras, dessas que a imprensa deveria chamar de crime e não de acidente ou desastre, ainda somos obrigados a testemunhar a falta de preparo das autoridades para lidar com a situação. Todo limpinho e bem penteado, o presidente da Vale se disse dilacerado com a situação. E que nenhuma palavra seria capaz de exprimir o que ele estava sentindo. Imagine o que sobra para os pais, filhos, maridos, esposas das vítimas. Já o governador de Minas declarou que, possivelmente, as equipes de resgates encontrariam apenas corpos.
Não são apenas corpos. São pessoas que tiveram suas vidas criminosamente interrompidas, famílias que nunca vão se recuperar, uma quantidade incontável de plantas e bichos de todas as espécies deixando um buraco na natureza. Talvez o nosso problema seja mesmo esse, o de considerar que o que fica pelo caminho depois de uma tragédia anunciada são apenas corpos, matéria inanimada, algo a se tirar da frente dos olhos e, redundância, enterrar bem fundo. O que não é visto, parece, não é lembrado.
Ainda mais que vem aí o Carnaval. E não seria mesmo de bom tom misturar uma ferida dessas com confete, tamborim e purpurina.
(Enquanto isso, na academia de bairro, três senhores de cabelo branco conversam na esteira sobre mercado financeiro. Um deles comprou ações da Vale por X na tragédia de Mariana e revendeu por XX alguns meses depois. Se tivesse esperado um pouco mais, disse ele, teria vendido por XXX. Tudo indica que vem aí mais uma oportunidade para os investidores. Ou várias: segundo levantamento, o Brasil tem hoje 45 barragens com risco de rompimento.) Talvez o nosso problema seja mesmo esse, o de considerar que o que fica pelo caminho depois de uma tragédia anunciada são apenas corpos, matéria inanimada, algo a se tirar da frente dos olhos e, redundância, enterrar bem fundo. O que não é visto, parece, não é lembrado.