Com a voz de quem é conhecida por uma nação há quase 40 anos, Sandy trouxe à pauta um assunto que está preso na garganta de muitas mulheres: o desafio, muitas vezes insuperável, de se achar bonita e se aceitar sem maquiagem e filtros das redes sociais.
O tema surgiu durante o primeiro episódio da série Angélica: 50 & Tanto, em que a apresentadora recebeu Sandy e outras artistas que também iniciaram a carreira na infância para bater um papo sobre suas vivências. Nele, a cantora revelou que não fica sem maquiagem e que está desacostumada de sua “cara lavada”, muito pelo fato de ter crescido sempre arrumada para as câmeras.
— Vejo vocês postando foto sem filtro. Eu não consigo. Eu não me sinto à vontade com que as pessoas me vejam nua e crua. Eu não ando sem maquiagem. Eu não me acho bonita, e não me sinto confortável — relatou a cantora.
A fala de Sandy repercutiu na internet e suscitou uma série de comentários, muitos vindos de mulheres que relatam que também se sentem em uma “prisão estética”, ficam inseguras em postar fotos sem retoques por temerem “o julgamento pesadíssimo das redes sociais” e acham difícil “sair de casa de cara lavada” e ficar confortável assim.
Padrão histórico
No entendimento da psicóloga clínica e doutora em Medicina Carolina Quiroga, a necessidade de controle sobre como querem ser vistas – algo que vai da maquiagem à edição das fotos e vídeos compartilhados nas redes– tem muito a ver com o valor que se coloca sobre padrões estéticos para as mulheres há muitos anos, e que se potencializa com o hábito do uso das redes sociais.
— O assunto aqui é a cobrança cultural sobre a imagem da mulher. Há um padrão histórico esperado das mulheres extremamente enraizado na nossa cultura. É claro que temos a linha do tempo marcada por uma profusão de novos recursos que potencializam essas questões, mas elas já existem há tempos. Estamos vivendo numa cultura que é muito competitiva, obcecada por uma imagem perfeita, e estamos cada vez mais cercados de imagens irrealistas. Isso tudo acaba potencializando crenças e atitudes rígidas sobre o nosso próprio corpo, fortalecendo a insatisfação sobre alguns aspectos nossos — afirma.
Trazer o assunto à pauta não se trata de, mais uma vez, demonizar as coisas que a mulher gosta de fazer. Tampouco a discussão é sobre a abolição das belas makes e dos aplicativos de edição de fotos. Do ponto de vista da psicologia, observa Carolina, a questão só fica preocupante quando a pessoa deixa de se maquiar por desejo genuíno e prazer, e passa a fazê-lo para servir a um olhar rígido seu ou de terceiros.
— Há uma grande diferença entre fazer uma maquiagem pois sinto prazer em me arrumar e ter um ritual de beleza e fazer porque preciso atingir um padrão, porque tenho que estar com determinada aparência senão não sinto que estou bem, que sou bonita e que sou aceita. É importante saber que quanto mais potencializo crenças e atitudes rígidas sobre meu corpo, mais fortaleço minha insatisfação em relação à minha imagem. É um ciclo vicioso que precisa ser quebrado, frequentemente é autocrítica em excesso disfarçado de perfeccionismo – explica Carolina.
"Alienação" de si mesma
Em consultório, a psicóloga afirma que está cada vez maior a demanda por atendimentos relacionados a problemas de autoimagem – e que o público está sendo cada vez mais composto por mulheres jovens. Muitos dos casos não evoluem para um transtorno propriamente dito – como por exemplo o de ansiedade ou o dismórfico corporal –, mas a questão já é capaz de causar sofrimento à pessoa na medida em que a faz limitar sua vida em função da aparência. Quando este é o cenário, pode ser o momento de buscar orientação médica.
— É preciso prestar atenção quando a insatisfação corporal e com a imagem física de maneira geral impedem a pessoa de ter certos comportamentos como socializar ou se colocar numa situação de trabalho que seria positiva para ela, a exemplo da fala "eu não deixo que outras pessoas me vejam sem maquiagem". É possível trabalhar a autoaceitação, autocompaixão e o entendimento de que a imperfeição faz parte da pessoa, que é um fator bastante importante e protetivo dentro da saúde mental — detalha Carolina.
Para a psicóloga e psicanalista Camila Backes, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), o fato de cada vez mais mulheres relatarem que só se reconhecem no espelho com uma generosa camada de produtos aplicados no rosto é sinal de alerta de que pode estar havendo uma “alienação” de si mesmas, a qual pode ter impactos negativos na saúde mental.
— Quanto mais colada a uma imagem cheia de filtro ou maquiagem, e quanto mais "agradável" ao olhar essa imagem for – no sentido de estar simétrica, bonita –, mais a pessoa se aliena nisso. Só que quanto mais alienada, mais em sofrimento ela está pois está desconecta de quem é, da sua trajetória, da sua vida e da sua verdadeira importância. A beleza não está toda no corpo, está também naquilo que a gente constrói, no que a gente fala, no nosso trabalho. Acho que a saída para isso é buscar se reconhecer como um sujeito, que tem desejos, ambições e que tem a sua história — afirma.
Na perspectiva da psicanalista, o apego e o valor que se dá à imagem feminina dentro de um padrão estético, especialmente no Brasil, também revela uma espécie de fracasso nas relações interpessoais:
— Se a gente quer estar agradável ao outro, no fundo é por causa de uma demanda de amor. Nós queremos ser amados. Mas o que será que está fracassando nas relações entre as pessoas a ponto de que elas estão precisando “bancar” só no corpo essa demanda de amor? Ele pode vir de outros jeitos. É sobre as pessoas conversarem mais e amarem mais umas às outras para além da imagem — conclui.