O status de símbolo gastronômico do Rio Grande do Sul pertence aos vinhos, que são um convite ao turismo regional, mas as cervejas artesanais também colocam o Estado em posição de proeminência em nível nacional. A produção da bebida feita de malte e lúpulo segue um caminho menos midiatizado do que o daquela elaborada a partir das uvas e, ainda assim, ganha cada vez mais relevância e qualidade. De acordo com o último Anuário da Cerveja no Brasil, divulgado pelo governo federal, o país tem 679 microcervejarias, das quais 142 estão em solo gaúcho.
– Esse número pode ser explicado pelas nossas colonizações. Da alemã, herdamos o apreço pela cerveja, e da italiana, o gosto por criações alcoólicas e geladas. Foi por aqui que se iniciou essa produção artesanal, e as empresas sempre se destacaram em premiações, o que contribuiu para que a atividade se difundisse – explica Rodrigo Ferraro, presidente da Associação Gaúcha de Microcervejeiros.
No Brasil, não existe uma definição legal para o termo cerveja artesanal, mas o conhecimento popular aponta para aquelas preparadas de forma quase caseira, com fabricação mais restrita e cuidadosa, o que leva a produtos com resultados finais com grande variedade de aromas. Ainda que este tipo de bebida seja responsável por menos de 1% das vendas do mercado cervejeiro do país, o setor cresce a cada ano, atraindo principalmente jovens que desejam empreender e transformar um hobby em profissão.
Essa foi a motivação de Rodrigo ao criar sua microcervejaria, a Irmãos Ferraro, em Porto Alegre, com o seu irmão Marcelo. O que era uma brincadeira de família, virou negócio em 2012, com o auxílio de dois amigos que se tornaram sócios. A burocracia para conseguir os documentos necessários junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e à prefeitura dificultou o início dos trabalhos, que também foi atravancado pela existência de poucos fornecedores de insumos.
– Hoje, o grande desafio dos produtores é fazer com que as pessoas conheçam suas criações. Eu vejo cada vez mais as empresas participando de festivais com exposições e fazendo showroom em suas fábricas. Isso é ótimo, porque é preciso levar todos para perto das cervejarias, fugir daquele pensamento de que os rótulos devem ser encontrados somente nos bares – argumenta.
Para incentivar esse movimento de aproximação, além de fortalecer o turismo, gerar emprego e renda, e valorizar a produção gaúcha no segmento, foi sancionada, no início do ano, a criação da Rota das Cervejarias Artesanais. Ao todo, 22 cidades integram o roteiro, contemplando a região turística da Rota Romântica e outras localidades interessadas culturalmente: São Leopoldo, Novo Hamburgo, Estância Velha, Ivoti, Dois Irmãos, Morro Reuter, Santa Maria do Herval, Presidente Lucena, Linha Nova, Picada Café, Nova Petrópolis, Gramado, Canela, São Francisco de Paula, Alto Feliz, Campo Bom, Feliz, Igrejinha, São Vendelino, Sapiranga, Três Coroas e Vale Real.
AS CERVEJAS DO BAIRRO ANCHIETA
Os galpões e pavilhões que moldam grande parte da arquitetura do bairro Anchieta, na zona norte de Porto Alegre, também dão forma a um distrito reconhecido como a maior concentração de microcervejarias do Brasil e uma das mais importantes da América Latina. Em uma área de pouco mais de dois quilômetros, estão localizadas 14 microcervejarias que atraem visitantes diariamente e produzem juntas cerca de 150 mil litros da bebida ao mês. O local é um ponto estratégico da cidade, uma região majoritariamente industrial e com aluguéis baratos, o que atrai os cervejeiros.
No número 333 da Rua Provenzano, a porta de ferro é a entrada para a Seasons, a primeira a se instalar na área, em 2010.
– Boa parte das cervejarias que se instalaram aqui tem a mesma origem, os homebrews, então, a comunidade é muito próxima. O pensamento é o de se instalar no lado do dito rival, não para roubar clientes, mas para aprender e trocar ideias. Até porque não nos consideramos concorrentes diretos, mas parceiros de negócio para fazer o setor crescer – conta Leo Sewald, sócio-diretor e head brewer da Seasons. – É muito bacana, nos comunicamos abertamente sobre processos, melhorias. Ocorre muita ajuda na troca de insumos, existe uma camaradagem muito grande, porque todo mundo acaba se conhecendo – completa.
Assim como outras fábricas artesanais, a empresa surgiu de uma paixão familiar. Ao lado da esposa Caroline Bender, ele produzia cervejas em casa e, em 2007, começou a organizar o que seria o plano de negócios. No ano seguinte, o casal viajou para a Alemanha e ficou impressionado com a relação dos germânicos com a bebida maltada. Ao retornarem da Europa, tinham certeza com o queriam trabalhar.
– Decidi largar de vez meu emprego em informática para me dedicar inteiramente ao estudo do tema, mas chegou um momento em que travei. A produção caseira estava boa, mas eu não tinha conhecimentos de indústria para abrir uma fábrica. Então, em 2009, fiz um curso no Siebel Institute, em Chicago, que me deu o background técnico e administrativo que eu precisava para gerir uma empresa, e me expôs a um mercado de variedades de rótulos, diferentemente do alemão, que preza pela tradição – conta.
Desde que iniciou no ramo, há oito anos, Sewald busca trazer o espírito da escola norte-americana e pensa em seu local de trabalho como um estúdio de criação, onde faz cervejas com qualidade, criatividade e consistência. Não tratar a bebida apenas como um alimento, mas como um produto de entretenimento, brincando com fórmulas, aromas e sabores. Por isso, eles não produzem Pilsen e desenvolvem produtos que são considerados fora da curva.
A menos de 200 metros da Seasons, está a Tupiniquim, eleita a terceira melhor cervejaria nacional no Concurso Brasileiro de Cervejas deste ano, que contou com 475 competidores. A história da marca começou em 2010, quando os amigos Fernando Jaeger, André Bettiol, Christian Bonotto, Alex Ribeiro e Márcio Santos resolveram abrir a distribuidora Beer Legends. Contudo, fornecer rótulos internacionais para o mercado não satisfazia completamente os amigos, que, em 2013, criaram a própria cervejaria.
– Na época, nós sentíamos que faltava um produto com a cara do Brasil, então criamos algo que refletisse nossa identidade. A arara azul, nosso símbolo, é uma ave reconhecida internacionalmente, até estrelou o filme Rio. E, por causa disso, muita gente pensa que somos de lá – conta Bonotto.
A personalidade bem regional e única da empresa é evidenciada com a utilização de ingredientes típicos como caju, farinha de polenta e manga. A marca começou como uma cervejaria cigana, isto é, sem uma fábrica própria e utilizando a capacidade ociosa de terceiros. A ideia era fazer uma espécie de test drive para verificar a qualidade e inserção de mercado de suas criações.
A edição de 2014 da South Beer Cup, considerada a “Libertadores da América” do setor, foi um divisor de águas: a Tupiniquim foi a grande campeã, conquistando dois ouros, duas pratas e um bronze. Com o reconhecimento, foi necessário aumentar a produtividade, e a empresa se instalou no bairro Anchieta, em uma escolha que levou em conta a existência de outros negócios no local.
– Pensamos que era um caminho mais fácil a ser seguido, porque já havia outros lugares funcionando. Então, não era um tiro no escuro. Todo mundo se dá bem com todo mundo, vira uma interação muito grande. E como é um polo de referência, facilita muito estar aqui em termos de visibilidade – analisa.
A PRIMEIRA CERVEJA RURAL DO BRASIL
Produzir cerveja não é uma atividade, mas um estilo de vida para o biólogo e biotecnólogo Filipe Araujo. Ao lado do pai, Hugo Fernando Astarita de Paula, e da irmã, Luciana Araujo de Paula, ele trouxe para o Brasil o conceito de farmhouse brewery, ou cervejaria rural, ao criar a Zapata, que está em funcionamento desde janeiro de 2015. Construída sobre uma antiga casa de produção de cogumelos comestíveis, em um sítio em Viamão, a empresa segue a filosofia das cervejarias de fazenda franco-belgas e das novas norte-americanas que buscam inspiração e harmonização na natureza.
– Eu sempre fui muito apegado ao meio rural, porque vim de São Borja. Comecei a me interessar pelo tema quando morava em Barcelona e, ao voltar para o Brasil, em 2009, vim com a ideia de tomar cervejas melhores. Desde então, passei a produzir algumas receitas e busquei repensar a ideia das origens da bebida, entender onde ela se tornou mais elaborada e complexa, e vi que esse conceito não existia por aqui – recorda.O projeto começou a ser montado em 2012, e Araújo buscou um espaço que atendesse as necessidades do modelo que queria implementar. Foi no sítio de quatro hectares que encontrou o declive necessário para usar a gravidade como força motriz positiva. Isso porque um dos princípios da Zapata é a sustentabilidade, sendo a redução dos gastos energéticos e a valorização do ambiente parte da criação das receitas, os principais pilares do funcionamento da fábrica.
– É uma visão mais romântica. Usamos insumos produzidos no entorno ou na própria fazenda e respeitamos muito a sazonalidade dos ingredientes. A ideia é quebrar o conceito de que a cerveja é “preta e branca”, mas pode ser pensada e elaborada em uma escala de cinza, sem precisar se encaixar em um estilo; tendo uma mente muito mais aberta e deixando fluir com naturalidade uma expressão mais artística ao criar cada novo rótulo – explica.
Atualmente, a casa tem 32 criações, com destaque para aquelas da linha “Descubra-se revolucionário”, que traz releituras de estilos clássicos. As receitas são inspiradas em personalidades históricas, e os rótulos trazem pessoas anônimas em fotos preto e branco na qual são feitos esboços em aquarela que lembram o homenageado. Por exemplo, conforme a descrição oficial, a Mahatma, uma South American IPA, “é uma cerveja que luta pela paz. Sua força não está nos altos níveis de amargor e teores alcoólicos, mas na sua essência”.
– Todas as cervejarias artesanais do Rio Grande do Sul têm qualidade, o que é muito bom, mas faltam empresas com valores, conceitos e responsabilidade. Isso é muito difícil – comenta Araújo, orgulhoso da filosofia que guia a produção na Zapata.
CERVEJA MOTORIZADA
Observando o crescimento de eventos de rua na Capital e inspirado por um modelo de negócio existente na Europa e nos Estados Unidos, Rodrigo Grossini resolveu criar a primeira beertruck da cidade, em 2014. Sob o lema “Parece um sonho, mas é uma kombi carregada de cerveja”, ele e o primo Vinicius Cordeiro deram início à Veterana. A empresa, que começou com um único automóvel adaptado com seis torneiras da bebida maltada, atualmente tem cinco veículos que marcam presença em atividades culturais a céu aberto, aniversários, festas empresariais e até mesmo casamentos.
– Uma das kombis fica em um ponto fixo, enquanto as outras giram conforme a demanda. Começamos vendendo marcas de cervejarias gaúchas, mas hoje temos rótulos próprios que produzimos em regime cigano. Estamos vivendo esse momento de solidificação enquanto cervejaria artesanal – comenta Grossini.
O proprietário recorda que uma das principais dificuldades ao abrir o negócio foi a falta de uma legislação específica sobre o tema. Em Porto Alegre, as normas para a atividade de gastronomia itinerante foram regulamentadas somente em novembro de 2016. Contudo, na semana passada, a Câmara Municipal aprovou projeto de lei que, entre outros itens, possibilita, mediante concordância dos estabelecimentos fixos vizinhos, o estacionamento em distâncias menores que as previstas na legislação vigente e acena para que a prefeitura determine os lugares proibidos para a atuação.
A expectativa é de que novas beertrucks ganhem as ruas da Capital e aumentem a frota existente: desde que a Veterana foi fundada, outros bares cervejeiros móveis surgiram, como a Santuário e a Casa Nostra. Rodrigo enxerga nisso uma possibilidade de desenvolvimento da atividade, algo que considera positivo, ainda que represente um aumento da concorrência.
– As pessoas estão buscando não só qualidade no produto. Elas querem algo personalizado, excelência no serviço. O beertruck agrega valor a uma bebida que está em alta – finaliza Rodrigo.
ADVOCACIA CERVEJEIRA
Ao encontrar uma cerveja artesanal nas gôndolas do mercado, o consumidor pode, muitas vezes, achar o preço alto em comparação com as cervejas de massa. Uma das explicações para isso é a elevada carga tributária existente no meio, o que restringe a formação de novas cervejarias e também a maior circulação dos produtos. Na prática, as pequenas empresas acabam arcando com mais imposto do que as gigantes, que faturam na casa dos muitos milhões.
A partir deste ano, as microcervejarias, assim como as micro e pequenas vinícolas, destilarias e produtores de licores, passaram a ter a possibilidade de serem incluídas no Simples Nacional; pela regra antiga, fabricantes de alcoólicos eram proibidos de optar por esse regime. Mesmo com as mudanças, há limitações, como o teto de faturamento de R$ 4,8 milhões anuais. Por conta disso, a estimativa é de que apenas 10% das empresas do ramo possam se beneficiar.
O advogado André Lopes argumenta que este é um avanço muito grande, conseguido graças ao trabalho de várias instituições em Brasília, mas ainda assim, não é o suficiente para fomentar o mercado. No ano passado, o profissional resolveu unir sua paixão pela bebida com o trabalho, e se especializou no ramo: criou e incluiu aos serviços do escritório que toca na Capital com outros dois sócios o projeto Advogado Cervejeiro.
Lopes oferece consultoria jurídica para quem busca profissionalização e quer fazer do hobby seu trabalho. O primeiro passo, ele aponta, é o registro do estabelecimento junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária, e Abastecimento para que os rótulos possam ser vendidos. A comercialização da cerveja feita em casa é proibida, pois não há fiscalização. Já aquela que sai dos tanques de estabelecimentos legalizados passa por análises bimestrais.
– O mercado da cerveja artesanal ainda é muito incipiente, mas nem por isso deve deixar de ser profissional. Acredito que aqui, ele peca justamente nisso. Aí, passa pela questão de marketing, política, legislação, porque o pessoal ainda foca muito na parte manual da produção. Só assim conseguiremos crescer essa cena – analisa.
Para o advogado, um dos melhores modelos de negócio para investimento no ramo é o brewpub. Esses locais produzem cerveja destinadas ao consumo ali mesmo, geralmente junto a uma estrutura de um bar ou restaurante. A vantagem é dupla. Para quem bebe, há a possibilidade de experimentar uma bebida fresca, sem desgaste de transporte. Para quem produz, o benefício reside na eliminação de gasto logístico para distribuição e venda.
Devido à grande presença de microcervejarias em Porto Alegre – são quase 40 –, a cidade se antecipou em relação ao resto do país e, em outubro de 2016, foi promulgado um decreto sobre a regulamentação desses espaços. Entre as principais definições, o texto afirma que não pode haver engarrafamento industrial ou automatizado, e a produção deve ser inferior a 10 mil litros mensais.
– Ainda há poucos deles no Estado. Em São Paulo, cerca de dois são abertos mensalmente, o que mostra que aqui, apesar do alto número de cervejarias, ainda estamos engatinhando. Acredito que seja um atraso de modelo de negócios, de uma mentalidade que ainda vê mais vantagem na venda para lojista – conclui.
A PRIMEIRA CERVEJA DO RS
Os imigrantes alemães foram os pioneiros na produção de cerveja Estado. No final do século 19, Georg Heinrich Ritter foi um dos fundadores de Linha Nova, uma picada rodeada de vales e serra, e se tornou o patriarca de uma família que se destacaria na fabricação da bebida. Ele aprendera as técnicas de produção ainda na Alemanha, com familiares maternos. Registros apontam para 1864 como o ano em que foi feita a primeira cerveja em solo gaúcho.
Os descendentes de Ritter também se dedicaram à atividade em outras regiões do Estado: em 1894, seu filho Heinrich passou a administrar uma cervejaria em Porto Alegre. Mais tarde, em 1924, contou com outras duas empresas familiares sob o nome comercial de Cervejaria Continental. Em 1946, foi adquirida pela carioca Brahma, tornando-se a maior potência do país à época.
* Conteúdo produzido por Eric Raupp