Foi-se o tempo em que somente a novela das nove era a menina dos olhos na grade de programação da Globo. Ao longo dos últimos anos, tramas de horários menos badalados vêm ganhando cada vez mais notoriedade entre o público. É o caso de Vai na Fé, que estreou há três meses, em 16 de janeiro, e conquistou diferentes tipos de espectadores, de novatos a noveleiros de carteirinha.
Em março, a trama de Rosane Svartman conquistou 23 pontos na média geral de audiência, chegando a ultrapassar esse número em algumas capitais. No Rio de Janeiro, a média do mês ficou em 25 pontos. Já em Recife e Salvador, a novela registrou a melhor audiência de todas as praças: 30 pontos. As duas antecessoras de Vai na Fé, as novelas Cara e Coragem e Quanto Mais Vida, Melhor, fecharam com média de 20,5 pontos.
Por isso que os números de Vai na Fé são significativos para a faixa das 19h, que paga o preço de não se encaixar na rotina de muitos brasileiros — há, por exemplo, quem ainda não tenha chegado em casa para assistir às tramas do horário. Mas o folhetim atual vem provando que quando uma novela consegue fisgar o público, ele dá um jeitinho de assisti-la. Tanto que, desde sua estreia, Vai na Fé figura no top 5 de produções mais vistas no Globoplay, streaming no qual é possível assistir às novelas da Globo em qualquer horário, após a exibição na TV.
O resultado da novela vem chamando atenção de pesquisadores da teledramaturgia, que apontam uma série de elementos responsáveis pelo sucesso da trama. O primeiro deles passa pela protagonista Sol, interpretada pela gaúcha Sheron Menezzes. Vendedora de quentinhas e moradora do subúrbio carioca, ela personifica o imaginário da mulher brasileira batalhadora, que corta um dobrado diariamente e que faz de tudo pelo bem-estar da família, ao passo em que também traz dilemas bastante peculiares: é evangélica, mas tem um passado como dançarina de funk e ainda conserva o sonho de ser uma grande artista, enquanto teme que isso acabe por afastá-la de sua religiosidade.
Com todas essas nuances, Sol virou a queridinha do momento na teledramaturgia — para comprovar, basta dar uma olhadinha em redes sociais como o Twitter, onde Vai na Fé permaneceu entre os assuntos mais comentados do país durante 118 horas no último mês. Para a autora Rosane Svartman, a empatia do público em relação à protagonista se dá pela fácil identificação que ela causa nas pessoas. Longe de ser uma Helena de Manoel Carlos, Sol é uma mulher igual a tantas outras da vida real, e é isso que faz dela uma personagem incrível.
— Sol é batalhadora e, mesmo cheia de problemas, segue sua vida com fé e tenta encontrar alegria no seu cotidiano difícil. Às vezes nas pequenas coisas, no abraço de uma de suas filhas, por exemplo. Acho que muita gente se identifica com essa mulher que erra mesmo tentando acertar, que aprende e que segue em frente. E a Sheron Menezzes ilumina a Sol, traz nuances inesperadas e bem-vindas para a personagem — diz Rosane Svartman.
A percepção da autora é reforçada pela pesquisadora Clarice Greco, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Paulista (Unip) e autora do livro Virou Cult: Telenovela, Nostalgia e Fãs (Jogo de Palavras), que investiga os caminhos que levam uma telenovela a cair nas graças dos espectadores. Para ela, Vai na Fé acerta também ao tocar na representatividade por meio de Sol. Afinal, é em torno da vida, dos dilemas e dos sonhos dela, uma mulher negra, que a novela é construída.
— A Sol está representando a cabeça das mulheres brasileiras. Pela idade, pelos dilemas, pelo jeito de ver a vida, por ser guerreira mas também querer viver seus sonhos. Ela traz uma combinação que pode fazer muitas mulheres se identificarem, não só as mulheres negras. Mas, ao mesmo tempo, ela traz uma representatividade que é muito importante e que há tempos vem sendo reivindicada pelo público — analisa a pesquisadora.
Outra reivindicação antiga diz respeito à representação dos evangélicos na teledramaturgia. E é aí que mora mais um dos acertos de Vai na Fé: Sol e a família são evangélicos, algo que acaba atraindo à trama uma parcela da população que cresce cada vez mais no país. Somente entre 2000 e 2010, houve um aumento de 61% no número de pessoas que se identificavam com a fé cristã evangélica, conforme o Censo Demográfico de 2010. Naquele ano, a estimativa do IBGE era de que existiam 25,3 milhões de evangélicos no Brasil. A crescente seguiu desde então: de acordo com pesquisa realizada em 2020 pelo Datafolha, os evangélicos já são ao menos 65 milhões.
É um número grande demais para ser ignorado, e as empresas de comunicação sabem disso. A Globo, por exemplo, não esconde que voltou seu olhar com maior atenção para a parcela evangélica da população após analisar esse tipo de pesquisa — foi o que disse Amauri Soares, diretor dos Estúdios Globo, na conferência Rio2C do ano passado. Foi, em parte, também pelas pesquisas que a autora Rosane Svartman decidiu incluir o universo evangélico na trama de Vai na Fé.
— Por que não trazer evangélicos para a história? — ela questiona. — Percebi, durante a pesquisa de Bom Sucesso (outra novela das sete escrita por ela), que uma fatia imensa do público era de evangélicos. A personagem Paloma (protagonista de Bom Sucesso) também era uma mulher de fé, frequentava a igreja do padre Paulo, conversava com a santa na praça, mas era católica. Quando decidi retratar a Sol como evangélica, o que pelas pesquisas faria sentido, busquei consultoria — explica a autora.
A preparação da autora, que conta com o auxílio de um pastor como consultor de roteiro, talvez seja o grande trunfo da novela. Trazer personagens evangélicos para a tela não significa que os evangélicos irão aderir ao folhetim — até porque a presença desses personagens nas novelas não é uma novidade em si. O mais importante para conquistar a audiência desse público é a representação dada a ele na narrativa. Nisso, Vai na Fé vem mandando bem.
Conforme Priscila Chéquer, professora do curso de Comunicação Social da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) que pesquisa a representação de evangélicos nas novelas, Vai na Fé destina uma representação respeitosa a esse público. Faz isso, segundo a pesquisadora, ao dispensar os estereótipos que moldaram a forma como essa camada da população foi mostrada na teledramaturgia durante algumas décadas, quase sempre ancorada em perfis como "o fanático", "a crente safada" ou "o político evangélico corrupto".
Isso, além de agradar ao público evangélico, ajuda a desmistificar a imagem negativa que se criou em torno desses indivíduos nos últimos anos, por conta da aproximação de algumas igrejas a partidos políticos de direita. E também há algo que pode parecer óbvio, mas que não ocorria até pouco tempo atrás: os evangélicos de Vai na Fé têm história.
— Nem sempre foi assim — garante Priscila Chéquer. — Em muitas novelas, era como se os personagens não tivessem vida além de serem evangélicos. Não trabalhavam, não se relacionavam com outros personagens, era como se todo o arco deles girasse em torno da igreja, como se a religião fosse a única razão de eles existirem na trama. Em Vai na Fé, me parece que a religiosidade é mais um traço desses personagens, mas não o único — explica.
A receita do sucesso de Vai na Fé também conta com ingredientes mais simples. Um deles é a capacidade que a novela tem de equilibrar bem as discussões que se propõe a fazer — do racismo, por exemplo, uma das principais pautas abordadas — com amenidades que ajudam a tornar a narrativa menos pesada. E aí entram desde personagens cômicos como Lui Lorenzo (José Loretto), Hugo (MC Cabelinho) e Kate (Clara Moneke), a irreverente "Katelícia", até uma presença forte da música, sobretudo do funk.
Com todos esses elementos, a novela tem tudo para seguir em alta até o capítulo final. E principalmente porque, antes de qualquer coisa, é boa. Simples assim, como reflete a pesquisadora Clarice Greco:
— A novela tem vários desses pontos interessantes de serem analisados, mas o mais importante é que tudo isso é ancorado por um bom roteiro. A história é amarrada, os personagens são bem construídos, os diálogos são interessantes, com boas tiradas, e a novela tem cara de novela, não de série americana.