Em fevereiro de 2018, o apresentador Tiago Leifert fez no Big Brother Brasil um discurso sobre a bandeira feminista defendida por uma sister que estava no paredão. Naquela berlinda, a jornalista Nayara foi eliminada, e um dos pontos levantados por Leifert era o de que “representatividade não leva a nada” dentro do reality.
— Agora vocês representam algo. "Ah, eu represento a comunidade X". "Fulano representa a comunidade Y". "Eu represento sei lá o quê". Deixa eu falar a real. Ninguém aqui fora deu procuração para vocês representarem ninguém aí. Sem essa de representatividade, que isso não leva a nada — disse Leifert, em seu tradicional pronunciamento da eliminação.
Dois anos depois, o programa parece ter virado de cabeça para baixo. Na reta final da vigésima edição, o cenário mostrou-se completamente o oposto: representantes de diferentes movimentos dentro da casa ficaram entre os finalistas.
Manu Gavassi, cantora pop que apostou com força em um discurso feminista, votando por semanas seguidas em Felipe Prior por questão de “sororidade”; Babu, eliminado no sábado, e Thelma, negros, foram temas de conversas dentro da casa e o público rechaçou outros brothers acusando-os de racismo nas redes. Gizelly, também já eliminada, relatou casos de violência doméstica em sua infância.
No último domingo (19), a defesa de bandeiras na casa foi importante na formação do paredão. Manu votou em Babu para não escolher Thelma, "por ela ser mulher". Já Thelma, que assim como Babu luta contra o racismo, indicou Manu e atribuiu a escolha à quantidade de vezes que a cantora tinha ido ao paredão. Mesmo assim, o ator acabou indo para a berlinda.
O reality show tornou-se um ambiente de debate e de militância. Nas redes sociais, isso virou motivo de polarização de opiniões e formação de torcidas. No paredão entre Manu Gavassi e Felipe Prior, por exemplo, até o deputado federal Eduardo Bolsonaro tomou partido. “Tem uma militante de esquerda concorrendo com um cara que é politicamente incorreto e ganhou apoio de quem odeia mimimi, muitos jogadores de futebol, por exemplo. Então, BOA SORTE PRIOR”, escreveu o parlamentar.
O que mudou?
Nos últimos anos, houve uma crescente importância do debate sobre causas sociais na web – o que acabou impactando dentro do programa. Para Valmir Moratelli, pesquisador de audiovisual e teledramaturgia e doutorando pela PUC-Rio, não há como se desconectar o BBB da realidade nacional:
— Todos os programas são recortes de leituras da realidade, seja novela, entretenimento e o próprio Big Brother. Essas discussões são coisas debatidas nos últimos anos, mas com mais calor por causa de um governo de extrema direita em que a gente vive. A gente acaba tendo que reafirmar valores que já pareciam ser compreendidos na sociedade.
Diante da realidade em que a discussão sobre empoderamento feminino tem ficado mais evidente, as posiçõs de Manu Gavassi, uma das favoritas e alinhada ao feminismo, dialogam diretamente com uma parcela do público que assiste ao BBB 20.
O jornalista e professor da ESPM Higor Gonçalves, especialista em personal branding (gestão estratégica de marca pessoal), aponta que o fã-clube da cantoraa tem sua base de jovens, e esses têm ditado as regras do programa:
— As pessoas que mais votam aqui fora nos paredões estão confinadas como eles lá dentro e têm elevado a audiência do programa. Em sua maioria, são os nativos digitais, aqueles nascidos a partir de 2000, que seguem cantoras e as idolatram. São pessoas competitivas que vão seguir votando até ver ela ganhar.
Vitimismo
Outro aspecto que alimenta a discussão de militância e bandeiras dentro do jogo é o vitimismo. Dentro da casa, em uma conversa com Flayslane, a ex-sister Ivy falou que não concordava sobre o fato de Babu e Thelma usarem a questão da cor de pele para chegar até a final do programa.
— Até porque isso não é malefício nenhum. Você ser preto? Pelo contrário, quanto mais morena fico, mas eu gosto. Eu até perguntei para a Thelminha: "Eu posso falar que quero ficar no sol para ficar preta?", e ela me disse que não, porque eu nunca vou ficar preta, então isso pode soar mal — disse Ivy.
Nas redes sociais, os comentários renderam acusações de racismo contra Ivy. Muitos espectadores também alimentaram a questão de Babu estar usando isso a seu favor, o chamado vitimismo. No entanto, o que ajuda o brother a ganhar torcida é sua própria história de vida, muito acima de seu isolamento dentro de jogo:
— O sofrimento faz parte da vida dele. Nos discursos, quando era indicado ao paredão, sempre reforçou a necessidade de criar os filhos, pagar as contas atrasadas. O público se identifica mesmo com histórias de sofrimento legítimas — acredita Gonçalves.
Ao mesmo tempo, Babu vive uma dualidade: apesar de ranzinza em alguns situações, é humilde.
— Ele tem uma consciência social grande, sofre o racismo na pele, a pobreza, e vem colocando isso tudo na casa. Usa desses “gatilhos” em momentos certos. Ele sempre valoriza o amor pela família, algo que o brasileiro valoriza muito — frisa Gonçalves.
Como o público viu as dicussões na casa
Feminismo
Ainda nas primeiras semanas, os homens – liderados por Hadson e Felipe Prior – iriam usar Lucas Gallina para fazer uma espécie de teste de fidelidade com as sisters casadas, especialmente Bianca Andrade, a Boca Rosa. Segundo Hadson, a blogueira teria esse ponto como "fraqueza". Marcela, em conversa com o ex-jogador de futebol, acabou descobrindo o plano e avisou a mulherada sobre a ideia.
Daniel, que veio da casa de vidro (o público, do lado de fora, alertou sobre a existência do teste com cartazes), entrou no reality e, em uma das primeiras conversas, pediu para todos acreditarem em Marcela. A partir dali, as mulheres se voltaram totalmente contra os homens e passaram a eliminá-los, um por um - estratégia que contou com o apoio dos fã-clubes das sisters nas redes sociais.
Em muitas votações no confessionário, as participantes justificavam o voto “para proteger as mulheres” e Manu, em uma votação aberta, usou o termo “sororidade” - até então desconhecido pelo próprio Prior.
Racismo
Babu e Thelma foram as principais vítimas de racismo dentro do reality. O pente que o ator utiliza para arrumar o cabelo e até o fato de Thelma ter deixado uma toalha manchada com maquiagem da sua tonalidade de pele foram questionadas por outros participantes – e repercutiram nas redes sociais.
Ivy, eliminada neste domingo, foi ainda mais além: chegou a falar em racismo reverso. Em uma conversa com Marcela, ela disse que não gostava quando as pessoas "desfaziam" quem tem o tom de pele mais claro.
— Não é a mesma coisa. Não existe racismo contra branco. A gente sempre foi privilegiado e sempre vai ser — interrompeu Marcela.
Homofobia e gordofobia
Outras falas envolvendo também geraram repercussão na web. Babu, por exemplo, foi considerado homofóbico ao chamar Daniel de “viadinho” durante uma festa. Semanas antes, Guilherme falou que ainda não tinha chorado dentro da casa “porque não era viado”.
A gordofobia também foi assuntos. Ivy deu risadas no quarto ao ver Babu dormindo, dizendo que ele “era muito gordo”. Em outra ocasião, na cozinha, o próprio Babu questionou os outros brothers sobre o fato de os colegas não escolherem ele ou Victor Hugo para serem duplas em provas do líder. Ele acreditava que os participantes tinham receio de que as provas testassem agilidade.
— Não adianta vocês argumentarem. Não estou acusando ninguém. Estou falando que foi um fato. Todo mundo pensava que era prova de resistência, sim. E todo mundo que se propôs a fazer dupla não olhou para os gordinhos. Eu também, de repente, faria a mesma coisa, porque seria um “atraso” no meu objetivo — disparou o ator.
Machismo
Além do teste de fidelidade, os homens da casa soltaram diversas frases consideradas machistas pelo público, como:
- "Se a gente quisesse, a gente já tinha pegado todas as meninas que estão aqui."
- "Acertaram muito nas minas do seu grupo, que são muito gente boa, divertidas, loucas e retardadas. Mas a qualidade poderia ter sido um pouco melhor. "
- "Essa edição é a que tem menos gata. Porque nas outras edições sempre vinham umas bem bonitas."
- "Tem que tirar uma daquelas p!@#$."