Desde que foi apresentada, em 2011, a série de TV britânica Black mirror vem pautando discussões sobre a fidelidade ou o exagero com que retrata um futuro bastante próximo, no qual a tecnologia, em meio às tantas benesses que proporciona, submete as pessoas a uma perigosa relação de passividade e dependência. O registro de uma distopia à vista, com um mundo habitado por zumbis eletrônicos ou cobaias à mercê de corporações com interesses nefastos, ganhou ainda mais visibilidade sob a chancela da Netflix. A plataforma de vídeo por streaming, que já tinha disponibilizado sete episódios das duas temporadas de Black mirror, bancou a produção de seis novos capítulos, disponíveis no Brasil desde o dia 21 de outubro.
Mas é interessante notar que, na sua prospecção de um nada admirável mundo novo – em que avaliações com estrelinhas determinam quem é quem na sociedade, a lavagem cerebral cria máquinas de guerra, a vigilância é irrestrita e o justiçamento virtual se torna também físico –, Black mirror tem um pé no passado. Revive a mesma proposta, em forma e conteúdo, de Além da imaginação, seriado que fez muito sucesso nos anos 1950 e 60. Deste, retomou a estrutura de antologia, com histórias independentes, e o viés fantástico dos enredos, explorando em diferentes aspectos os anseios, vícios e fobias contemporâneas, tanto as críveis quanto as possíveis.
– Esse formato é fantástico – diz Felipe M. Guerra, cineasta independente e jornalista especializado em cinema de gênero. Não tenho paciência para o estilo novelinha, de ficar temporadas inteiras acompanhando séries como The walking dead ou Game of thrones. Parece que tudo no cinema, na TV e na literatura tem de ser apresentado em grandes sagas. A antologia te permite ver um episódio isolado. Se perder algum, não faz diferença.
Professor de cinema da Famecos -PUCRS, Roberto Tietzmann estabelece paralelos entre Black mirror e Além da imaginação:
– Existe uma relação bastante direta entre essas duas séries. Ambas falam de medo, de esperança, de paranoias. Black mirror tem como característica prospectar um futuro próximo, coisas que podem acontecer em cinco, 10 anos. Essa relação da ficção com a projeção do futuro, de que a tecnologia pode destruir você, vem desde o século 19. Está presente em obras como Frankenstein, de Mary Shelley. Black mirror explora isso de uma forma mais plausível. Se o Titanic era inafundável e naufragou na primeira viagem, posso confiar nesse telefone, nesse serviço de nuvem? Nossos dados que estão aqui na nossa frente podem estar em outro lugar. Uma das premissas da série é que nossos piores inimigos somos nós mesmos.
Guerra complementa:
– Black mirror é um soco no estômago. Além da imaginação, embora costume ser lembrada por seus episódios de terror, era mais voltada à ficção científica e à fantasia. Aspectos como a ironia das tramas e os finais surpreendentes se parecem com as histórias de Black mirror. A prospecção visionária em relação ao lado negro da tecnologia é bastante assustadora. O terror, por exemplo, vem sendo muito banalizado no cinema e na televisão com muitas produções de vampiros e zumbis. Sabemos que monstros não existem. Mas sabemos que se expor demais nas redes sociais é um perigo real.
Uma porta que se abre com a chave da imaginação
É uma pena que a Netflix tenha tirado Além da imaginação de seu cardápio no Brasil. Para quem não conhece ou quer rever esta que é uma das mais importantes produções da história da TV, existem os DVDs lançados no país. Exibida nos Estados Unidos de 2 de outubro de 1959 e 19 de junho de 1964, ao longo de cinco temporadas com 156 episódios, The twilight zone (titulo original) foi criada pelo produtor e roteirista Rod Serling no formato de antologia – sem enredos e personagens fixos –, que abrigasse histórias de diferentes vertentes do universo fantástico, em especial terror e ficção científica, por um viés, digamos, mais existencialista e menos espetacular.
No auge da Guerra Fria que fez o mundo temer pelo apocalipse nuclear, Além da imaginação apresentava tramas nos campos da alegoria política, do thriller psicológico e da prospecção futurista. Combinava o sobrenatural e o científico trafegando por mundos paralelos e viagens no tempo e no espaço, explorando conflitos entre homem e máquina, investigando temas como manipulação da memória.
Tornou um clássico, por exemplo, o episódio do bancário apaixonado por livros que se esconde em um cofre para poder ler sossegado. O refúgio habitual faz dele o único sobrevivente de uma catástrofe nuclear. Mas o sonho vira pesadelo quando seus óculos de lentes grossas se quebram. E também é emblemático o que apresenta o drama de uma mulher que se submete a cirurgias plásticas para se adequar ao padrão de beleza imposto pela sociedade que a vê como anormal, uma potente alegoria sobre o preconceito e a intolerância quando fervia nos EUA a questão dos direitos civis dos negros
Além da imaginação inspirou séries como A quinta dimensão (1963–1965) e Galeria do terror (1969–1973), esta também criação de Serling, e a dezenas de produções ao longo das décadas seguintes. Ganhou uma releitura no cinema, No limite da realidade (1983), filme com episódios dirigidos por John Landis, Steven Spielberg (que nos anos 80 lançou a série de TV no formato Amazing stories), Joe Dante e George Miller. Novas versões de Além da imaginação chegaram à TV em 1985 e 2002, respectivamente, mas sem o impacto da produção original, ainda hoje um rico manancial de inspiração para roteiristas.