
Igor Goulart, 42 anos, é "perdidamente apaixonado" pelo Carnaval. Mas não se trata do Carnaval de Porto Alegre, tampouco o do Rio de Janeiro. A folia que faz o coração do porto-alegrense bater mais forte é a de Artigas, cidade do norte do Uruguai que faz limite com Quaraí, na fronteira oeste do RS.
Por lá, Igor é tratado como celebridade. É difícil encontrar um único artiguense que não conheça o rosto (e a voz) do brasileiro. Há duas décadas, ele é o intérprete oficial da escola de samba Barrio Rampla, a maior campeã do Carnaval da cidade, que tem na festa o seu principal atrativo turístico.
— Artigas respira Carnaval o ano inteiro — explica Igor. — Toda a população da cidade participa e se envolve, tanto que a rivalidade entre as torcidas das escolas de samba é enorme, parecida com a rivalidade da dupla Gre-Nal aqui em Porto Alegre. Todo mundo me conhece por causa disso. Mas é claro que, com essa rivalidade, alguns me amam e outros me odeiam (risos) — detalha o músico.
A relação do gaúcho com o Carnaval uruguaio nasceu em 2005, pelo que ele considera "uma obra do destino". Igor, então com 21 anos, era um dos cantores da porto-alegrense Academia de Samba Puro, escola de samba oriunda da Vila Maria da Conceição.
À época, o músico dava os primeiros passos da carreira carnavalesca, tendo como mestre Paulinho Durão, um dos mais célebres intérpretes do Carnaval da Capital, também o responsável por mandar Igor para além da fronteira.
Isso porque o cantor, que faleceu em 2020, costumava ser contratado para puxar escolas de samba de diversas cidades. Contudo, por um conflito de agenda, Paulinho se viu diante de um impasse: na mesma data, precisaria cantar no Carnaval de Taquari, na região central do Rio Grande do Sul, e no de Artigas, no Uruguai. O intérprete priorizou o desfile gaúcho, delegando ao pupilo a missão de cantar o samba enredo da uruguaia Barrio Rampla.

Igor lembra que, até aquele momento, jamais havia ouvido falar de Artigas, mas aceitou o desafio. Junto a outros dois companheiros da Samba Puro, o músico pegou um ônibus até Livramento. De lá, o trio seguiu de carro para a cidade uruguaia.
— Não tínhamos ideia do que ia nos esperar e não falávamos uma única palavra em espanhol, foi totalmente na cara e na coragem. Quando cheguei e me apresentei como cantor principal, os caras me olharam com desconfiança, porque eu era um gurizão. De cara já pediram para cantar o samba, bem desconfiados, mas a música terminou com o barracão inteiro aplaudindo — lembra Igor.
Daquela ocasião em diante, o gaúcho nunca deixou de vestir o verde e vermelho característicos da Barrio Rampla. Como voz oficial da escola de samba, Igor venceu o Carnaval de 2005 e outros 13 que vieram depois, tornando-se o intérprete que mais conquistou títulos na cidade.
— Nunca imaginei viver essa história em um lugar que eu nem sabia que existia. Hoje, Artigas faz parte da minha vida, sou praticamente um artiguense. Fiz amigos que considero irmãos, tenho afilhados na cidade e um amor indescritível pela minha escola de samba. São 20 anos de Carnaval, 14 títulos conquistados e muito orgulho por poder defender uma escola tão gigante quanto a Rampla — diz o gaúcho.
Festa grandiosa
Igor fala com entusiasmo contagiante a respeito do Carnaval artiguense. Ao longo dos últimos 20 anos, o músico viu a festa evoluir e se tornar referência no Uruguai — superando, inclusive, a folia de Montevidéu, onde também passou a desfilar:
— Hoje, o Carnaval de Artigas é o mais famoso do país. A televisão uruguaia transmite os desfiles em cadeia nacional, e muita gente de outros lugares vai até Artigas para acompanhar os desfiles de perto. A cidade vira uma loucura, com ônibus e mais ônibus chegando a todo momento, hotéis lotados e comércios faturando — conta Igor.
Conforme dados do governo local, o Carnaval de Artigas atrai cerca de 20 mil turistas à cidade. O número representa um acréscimo de quase metade da população do município, que tem cerca de 44 mil habitantes.
Mais de 60 mil pessoas se reúnem para ver as escolas de samba passarem pela avenida principal da cidade, onde os cortejos são realizados. O espetáculo ao qual o público assiste é inspirado no Carnaval brasileiro, com carros alegóricos exuberantes, fantasias glamourosas e baterias afinadas.
Aliás, parte dos adereços que embelezam as escolas de Artigas são comprados de agremiações do Rio de Janeiro, que desapegam dos itens após a realização de seus desfiles. No negócio podem entrar até mesmo alegorias, que são levadas da cidade maravilhosa ao norte uruguaio em grandes operações logísticas.
Os sambas são cantados em português, não em espanhol. Os temas dos desfiles também costumam se assemelhar ao que é visto no Carnaval brasileiro, com predominância de enredos de matriz africana, mas relacionando a cultura negra ao contexto do Uruguai.
— As pessoas não têm dimensão do que é o Carnaval de Artigas. Imagina um carnaval da qualidade do Rio de Janeiro, mas em uma cidade do Interior. É uma festa muito grandiosa.
Lições para Porto Alegre
O músico encara a divulgação da folia artiguense como uma missão pessoal. O desejo de Igor é que cada vez mais brasileiros conheçam e se encantem pela festa dos hermanos — que, no entendimento dele, tem muito a ensinar ao Carnaval de Porto Alegre.
Igor já não integra nenhuma agremiação da folia porto-alegrense, mas lamenta a pouca valorização que a festa de momo encontra na capital gaúcha. Para ele, a experiência de Artigas prova o quanto as cidades têm a ganhar investindo na cultura popular.
— O Carnaval transformou a realidade de Artigas. É algo que tem o apoio da prefeitura e que mobiliza a todos, ricos e pobres, pretos e brancos, sem distinção. Nesses 20 anos, eu vi a economia da cidade se desenvolver por causa disso. Fico pensando que em Porto Alegre também poderia ser assim.