O hábito de reler um livro preferido, maratonar uma série querida ou assistir ao mesmo filme mais de uma vez e ainda assim sentir o mesmo entusiasmo, como se fosse a primeira vez, tem nome: cultura do conforto.
Em 2012, um artigo publicado pelo Journal of Consumer Research revelou que rever obras favoritas era capaz de provocar uma sensação reconfortante. Embora seja uma prática comum e antiga, esse comportamento tem se manifestado, atualmente, em plataformas como TikTok e Instagram, onde usuários compartilham suas produções preferidas usando hashtags como comfort movie ("filme de conforto") ou comfort reads ("leituras de conforto").
Para muitas pessoas, recorrer a obras audiovisuais ou literárias já conhecidas não se limita ao simples entretenimento. A prática também está relacionada à sensação de familiaridade com os personagens, as tramas e os cenários, além de oferecer segurança emocional. Adultos que continuam apaixonados por clássicos como Harry Potter, Chaves ou Star Wars podem encontrar nesses universos refúgios que os aproximam de memórias e sentimentos do passado.
O fato de muitas pessoas terem uma rotina caótica, ou as questões capitalistas que levam a produzir e produzir, faz com que elas procurem uma válvula de escape.
MARTHA SANTIAGO
Psicóloga
Contrariando a ideia de que obras de conforto são apenas aquelas com narrativas leves, a psicóloga Martha Santiago esclarece que a escolha do que proporciona conforto é totalmente individual e pode ir dos chamados true crimes às comédias românticas ou seriados como Friends (1994-2004) — que, para muitos, só de ouvir a música de abertura já dá vontade de assistir a um "novo" episódio.
— O fato de muitas pessoas terem uma rotina caótica, ou as questões capitalistas que levam a produzir e produzir, faz com que elas procurem uma válvula de escape. Então, o que não gera conforto é o que faz com que a gente busque conforto, e muitas vezes um conforto repetitivo — explica a psicóloga.
O diferencial das obras que seguem conosco
Diferentemente das narrativas que desaparecem rapidamente da nossa mente, há aquelas que seguem conosco pelo resto da vida. Mas, afinal, qual é o diferencial delas?
Tanto Martha quanto o jornalista cultural e criador de conteúdo no canal Aprofundo Lucas Reichert concordam que a permanência dessas narrativas está associada à construção e identificação de quem se é.
As narrativas que conversam, reafirmam e não tentam mudar quem a gente é, essas ficam.
LUCAS REICHERT
Jornalista e criador de conteúdo
Um dos exemplos citados por Reichert é a série mexicana Chaves (1972-1983), a que ele e a mãe assistiram quando ambos eram crianças. Para Lucas, a experiência sempre vai ser boa "porque Chaves se conecta com todo mundo", mesmo que em épocas e de formas distintas.
— As obras a que a gente não reassiste são aquelas que não se conectaram com a nossa identidade, mas as narrativas que conversam, reafirmam e não tentam mudar quem a gente é, essas ficam — afirma ele.
O conforto de saber como termina
Além do senso da segurança emocional, que surge da familiaridade com uma obra, existem outros aspectos que definem o termo, como a nostalgia e a previsibilidade. Segundo Reichert, o sentimento de saber o que esperar de uma obra cultural faz com que seja possível se concentrar em detalhes que não tinham sido percebidos na primeira vez.
— Você já sabe o que vai consumir, então não passa pela surpresa de descobrir que perdeu seu tempo. A ansiedade também está muito ligada a isso, fazendo a gente buscar algo garantido, e não uma experiência que pode ser frustrante no final das contas — exemplifica Lucas, que acredita que a nostalgia também tem o papel de auxiliar a lidar com as mudanças e incertezas do presente.
Independentemente de quanto tempo passe, as pessoas mudam, mas as suas obras favoritas continuam as mesmas. "Quando você assiste a esse filme e finalmente entende a profundidade dessa cena", escreveu uma mulher no TikTok ao assistir novamente ao momento em que Jenna (Jennifer Garner) retorna para a sua casa de infância ao som da música Vienna, de Billy Joel, no filme De Repente 30 (2004). Com isso, ela quer dizer que, além da previsibilidade, a nostalgia oferece contexto.
Conforme a psicóloga Martha, esse sentimento está ligado justamente ao processo de amadurecimento, pertencimento e desconstrução pessoal.
— Esse momento não vai voltar, a gente não vai sentir tudo de novo todas as vezes que for reassistir, porque aquele momento é nostálgico. A gente amadureceu. Muitas vezes, vamos consumir algo com que não concordamos mais, é tudo um processo de desconstrução — enfatiza ela.
Dificuldade com o novo e o desconhecido
Se, por um lado, a previsibilidade é um dos benefícios da cultura do conforto, por outro, Martha chama a atenção para a dificuldade com o novo e o desconhecido que ela traz também.
— Eu estou assistindo? Eu estou prestando a atenção mesmo? Essa dupla atenção faz com que não tenhamos qualidade em "nada" — salienta Martha — Esse lugar do conhecido aumenta nosso medo do desconhecido e do imprevisível também.
Produção: Rayne Sá