Enganou-se quem esperava que a participação de Muriel Barbery no Fronteiras do Pensamento fosse descomprimir a atmosfera carregada que se instaurou em Porto Alegre desde que a enchente devastou lares e famílias. Não houve momentos de alívio durante sua fala na noite desta quarta-feira (5), no Teatro da Unisinos, mas uma contundente defesa do romance literário e do retrato profundo da vida humana como saída de emergência de um mundo onde prevalecem interpretações rápidas, superficiais e únicas a respeito da realidade.
Citando o diabo não como uma entidade espiritual acima dos seres humanos, mas como uma força mundana que se manifesta através de diferentes valores e acontecimentos, a escritora francesa, autora de A Elegância do Ouriço (Companhia das Letras, 2008), colocou em prática sua formação filosófica, marcada por 15 anos de atuação em sala de aula. Disse que o arguto espírito maléfico parece rondar o século 21 à espreita de uma nova guerra, destruindo o que sempre foi tido como importante para uma democracia, como a verdade e a tolerância.
Vocês também não têm a sensação de que o 21 é o século da exclusão?
MURIEL BARBERY
Escritora francesa, autora de obras como "A Elegância do Ouriço"
— A principal guerra é entre a mentira e a verdade. Mentir é admitir que existe uma verdade a distorcer. O diabo hoje não se importa com a realidade. A desinformação poderia ser lema do diabo no século 21. Na França, país do Iluminismo, berço da enciclopédia, é praticamente impossível debater. O campo midiático público tornou-se um vasto ringue. E não estou falando da paixão de se engajar naquilo que se acredita. Estou falando na intenção de que se triunfe uma certeza que pisoteia a verdade — disse a escritora.
Falando sobre a proliferação das narrativas únicas a partir do uso constante das redes sociais, Muriel disse que as pessoas parecem se apegar ao que acreditam que é a própria identidade, destruindo o próximo. Em uma época marcada pelo verbo compartilhar, em que se divulga freneticamente opiniões sobre qualquer coisa e fragmentos da vida privada, o resultado mais parece o de pessoas afastadas uma das outras do que próximas.
— Vocês também não têm a sensação de que o 21 é o século da exclusão? — questionou.
Muriel deu a esta conferência em Porto Alegre o nome de "Literatura, último bastião da liberdade". Como poderia o romance literário recuperar uma sociedade que interpreta e julga de forma tão veloz a partir do incessante consumo de imagens na televisão e nos celulares? Acostumados com imagens de guerra e violência a toda hora estampadas nas telas, os seres humanos já não se comovem tanto com a desgraça, acredita Muriel. Como se os sentidos tivessem embotado. Porque são imagens dadas, e não criadas.
Ao ler um romance, uma história escrita, as cenas começam a ser criadas na cabeça do leitor. Para a autora, isso seria uma ponte para compreender a vida do outro, um exercício de alteridade, ainda que esse outro seja fictício.
— É por isso que opto por refletir sobre a ficção literária, sobre o texto, sem imagens. Quando lemos um livro, não somos donos da narrativa, mas somos das imagens. O diabo é aquele que impõe as imagens, em que a verdade não tem mais importância. O romance hoje é o pior inimigo do diabo.
Muriel alertou para a queda na venda de livros de ficção frente a ascensão de séries e filmes no streaming. Na visão da autora, isso se deve à complexidade contida na narrativa literária, ao esforço que se deve empenhar para compreende-la e produzir as imagens que descreve:
— Textos literários que apresentam certa complexidade estão em queda. A que se deve isso? Tudo o que desconcerta é rejeitado. A literatura enfrenta a concorrência das séries, que exigem menos atenção, já que produzem suas próprias imagens. As grandes obras de romance não dão respostas.
Citando grandes romancistas, como Liev Tolstói e Milan Kundera, Muriel disse que não cabe ao romance literário interpretar o presente nem o espírito de uma época. O romance, seja ele qual for e contando a história que for, é um retrato atemporal sobre a existência humana. Por isso, um caminho para se entender os seres humanos e fugir de lógicas simplistas resumidas em bem e mal, argumenta.
— Os romances exploram as possibilidades das existências. O romance não examina a realidade, mas a existência. Os romancistas desenham o mapa da existência. Um mundo no qual não se lê mais grandes ficções é um mundo perdido — completa.