Querida Caxias do Sul. Faz 30 anos neste 2022 que mudei-me da ensolarada Salvador para tuas encostas nevoentas. Em todo esse tempo, sempre me perguntam o motivo real dessa mudança. E quando contrario qualquer resposta precisa – um ótimo emprego, um grande amor – com um evasivo “queria mudar de ares, de vida”, sempre identifico, no olhar do interlocutor, duas reações comuns. A primeira revela um certo orgulho bairrista, do tipo: “ele percebeu que esta é uma ótima cidade, melhor que a dele”. A outra reação é de puro espanto: “que louco!, trocar as praias e a leveza baianas por essa gelada cidade materialista e funcional...”. E eu me divirto com essas posturas opostas que terminam falando muito de ti. E de mim também.
Porque, Caxias, tu és plural desde o nome. E te distingues como a do Sul, já que existe outra, no Norte. Na impossibilidade de eu dar uma explicação objetiva para nossa relação, busco-a nessas pistas simbólicas. Aí vejo que és geminiana, como eu. E ainda és duplamente geminiana, com duas datas históricas a guardar, ambas no signo de Gêmeos: 1º e 20 de junho. E como seria uma cidade geminiana, senão assim, com uma identidade que flutuasse entre opostos, que fosse leve e pesada, aberta e fechada, avançada e conservadora, cosmopolita e provinciana? Como, senão alvo de sentimentos polarizados como tão perfeitamente traduziu o também geminiano José Clemente Pozenato em seu poema Canto e Blasfêmia para a Pérola das Colônias?
E foi em teu espelho de imagens antagônicas – neblina sobre o basalto – que eu me vi refletido naquele já distante 1992 em que me fisgaste, como a propor: ei, mocinho, temos uma troca a fazer, queres ver qual é? E eu quis. Pois quando eu te encarei frente a frente, eu vi o meu rosto – não o que eu estampava, mas o que poderia ser. E foste um difícil começo, mas eu insisti, fiel a tua promessa silenciosa. Aliás, este é um truque teu: fazer-te difícil para testar a força dos que mereçam estar contigo. Não gostas de fracos, Caxias, bem sei. Inocente, puro e besta como eu era, tive que aprender a lutar. E quando dei por mim, estava maior e mais forte. Como não te enaltecer, entre belezas e asperezas que também são minhas?
Aqui te louvo e agradeço, ó cidade nascida no outono, minha estação preferida por suas cores e luzes tão diversas. Saiba que ainda me encantam tuas brumas, a borrar as copas das tuas últimas araucárias. Adoro quando teu chão se encobre de folhas secas, feito estrelas ao alcance dos pés. Meu coração se alegra quando aspiro teu ar frio rescendendo a lenha. E ainda me espelho em tuas ruas que viram o meu caminhar em direção ao que deveria ser. Tua história colou-se à minha, Caxias do Sul. O que me trouxe a ti? O destino, coisa de magia, sei lá. Só sei que, embora eu não seja muito de afetos derramados – nem tu –, hoje eu preciso dizer que te amo.