A primeira TV colorida, uma Philips 20 polegadas, foi comprada nas Lojas Colombo no início dos anos 1970 ocupando lugar de destaque na sala do apartamento de Raymundo Pezzi, bem na esquina das ruas Sinimbu e Marquês do Herval. Foi dali também que o joalheiro aposentado de 86 anos e sua família acompanharam a “chegada” da novidade, há exatos 50 anos.
Na tarde do dia 19 de fevereiro de 1972, seu Raymundo vislumbrou, da janela do primeiro andar do Edifício Dona Ercília, as câmeras da TV Difusora de Porto Alegre, o ônibus da TV Rio e todo o aparato montado na Sinimbu para viabilizar a primeira transmissão colorida a ser feita no país: o desfile da Festa Nacional da Uva. À noite, surpreendeu-se com esse mesmo cenário no Jornal Nacional, enquadrado em cores para todo o Brasil.
A partir daí, seu Raymundo e o Brasil passaram a assistir TV com “outros olhos”:
— Foi algo impactante, estávamos sempre acostumados a ver em preto, branco e cinza — recorda o joalheiro, um dos poucos de Caxias e do Brasil a dispor de um aparelho em cores na época.
A transmissão da Festa da Uva ao vivo, via Embratel para todo o país, durou cerca de duas horas e meia. Foi o tempo em que o presidente Emílio Garrastazu Médici, o governador Euclides Triches e a comitiva permaneceram na Sinimbu, conferindo o desfile de carros alegóricos a partir das arquibancadas. Para quem viu da janela e pela TV, como Pezzi, tudo deu certo. Porém, o sucesso daquele primeiro teste foi recheado de empecilhos, alguns ocorridos bem antes e bem longe dos parreirais e vinícolas da Serra.
Entre novembro de 1971, quando se iniciaram as tratativas do governo, e fevereiro de 1972, não foram poucos atritos entre o ministro das Comunicações, o caxiense Hygino Corsetti, e os diretores das principais emissoras de TV do Brasil. Os motivos iam desde o curto espaço de tempo, os custos da cor, o sistema de transmissão, os equipamentos e o evento a ser escolhido: Festa da Uva de Caxias ou Carnaval do Rio?
A opção pela festa gaúcha, uma tradição desde 1931 – e que já havia sido inaugurada por presidentes como Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Costa e Silva –, foi um choque no centro do país. Mas é perfeitamente compreensível avaliando-se a origem de quem estava no governo: o presidente Emílio Garrastazu Médici nascera em Bagé; Hygino Corsetti era natural de Caxias do Sul, assim como Mário Andreazza, ministro dos Transportes, e Euclides Triches, governador do Estado. Em entrevista ao Pioneiro em 2002, por ocasião dos 30 anos da transmissão, Corsetti (1919-2004) minimizou as críticas da época, de que estaria privilegiando um evento de sua cidade:
— Que se lixem os outros, estamos fazendo uma coisa muito mais importante do que essa ciumeira boba.
Um dos relatos mais detalhados de como se deu todo esse processo coube ao jornalista e professor Sergio Luiz Puggina Reis (1938-2018), diretor da TV Difusora até 30 de março de 1972. Em 2012, ano em que a transmissão completou 40 anos, Reis defendeu a dissertação “O Backstage da Televisão no Rio Grande do Sul”, pela PUCRS. Conforme destacado por ele, a primeira reunião sobre o início da televisão a cores no Brasil ocorreu em novembro de 1971, em Brasília. Corsetti e seus assessores receberam os diretores Walmor Bergesch e José Salimen Jr., representando a TV Difusora e a TV Rio; Walter Clark, diretor geral da TV Globo; Murilo Leite, da TV Bandeirantes; Paulo Machado de Carvalho Filho, representando a TV Record; José de Almeida Castro, a Rede Tupi; e Maurício Sirotsky Sobrinho, pela TV Gaúcha.
No livro Os Televisionários, Walmor Bergesch (1938-2011) deu mais detalhes daquele dia: “O diretor Walter Clark, representando a TV Globo, contrapôs o ministro, alegando que nenhuma emissora brasileira poderia realizar a transmissão, com a nova tecnologia, em tão exíguo tempo. Esclareceu que os custos, com a continuidade das transmissões a cores, seriam enormes, e lembrou que os telespectadores não possuíam receptores de televisão a cores e os que existiam no mercado tinham preços elevadíssimos. Concluiu dizendo que a TV Globo continuaria em preto e branco. Os representantes das demais emissoras concordaram com Clark”.
A negativa de Clark, na verdade, dialogava com a defesa do sistema americano NTSC pela Globo, enquanto Hygino Corsetti buscava implantar o alemão PAL-M, melhor, por não apresentar imagens duplas. Conforme detalhado por Reis na dissertação, naquele mesmo encontro, Bergesch informou ao ministro que a TV Difusora e a TV Rio teriam condições de realizar a transmissão a cores da Festa da Uva e iniciar parte de sua programação a cores, a partir de fevereiro do ano seguinte.
Em entrevista ao colega Roger Ruffato, da RBS TV Caxias, José Maurício Pires Alves, ex-diretor comercial da TV Difusora, voltou no tempo para explicar como uma emissora independente do Sul, pertencente à Ordem dos Freis Capuchinhos, foi a responsável por lançar a TV a cores no Brasil.
— Os freis possuíam, em Porto Alegre, a Rádio Difusora, instalada na década de 1940 como instrumento de divulgação missionária. Na década de 1960, eles decidiram montar uma emissora de televisão, a TV Difusora Canal 10, e compraram um equipamento moderníssimo, a cores. Em 1969, se associaram a dois comunicadores, Salimen Júnior e Walmor Bergesch, contratando também alguns profissionais da TV Gaúcha. A oportunidade surgiu quando o Brasil vivia o “milagre econômico”, o “milagre brasileiro”, e o presidente Médici e o ministro Corsetti toparam transmitir a festa — conta.
Associada da Difusora (posterior Bandeirantes), a TV Rio ajudou a viabilizar a cobertura. Como a emissora gaúcha não possuía unidade móvel, o velho ônibus de externas da TV Rio foi trazido, em cima de um caminhão, até Porto Alegre. Já as duas modernas câmeras foram encomendadas pela TV Difusora diretamente da fabricante inglesa EMI, assim que o Ministério das Comunicações decidiu-se pelo sistema PAL-M. Elas chegaram ao Rio de Janeiro em 6 de fevereiro de 1972. Sobre aqueles dias que antecederam a histórica transmissão, Zé Maurício recorda de outro episódio insólito.
— Quando cheguei de Porto Alegre, na véspera, não tinha mais reserva no hotel. A Casa Civil da Presidência da República tinha ocupado a minha reserva. Fui procurar outro, e não havia. Acabamos, eu e minha mulher, indo dormir num hospital.
Frustração pela manhã
Estavam previstas três transmissões naquele 19 de fevereiro de 1972. A primeira, às 10h, ocorreria diretamente dos Pavilhões da Festa da Uva e da Feira AgroIndustrial, na Rua Alfredo Chaves, onde estava prevista a visita do presidente Emílio Garrastazu Médici, dos ministros e da comitiva. Porém, a chuva da noite anterior e a umidade comprometeram o micro-ondas que transmitiria o sinal do alto do Edifício Guadalupe, em construção na Rua Dr. Montaury, para a torre da Embratel.
Cancelada a transmissão matutina, as atenções se voltaram para o desfile de carros alegóricos, previsto para as 14h. Duas câmeras foram utilizadas, uma no teto do ônibus de externas da TV Rio, a outra sobre uma plataforma defronte à Catedral Diocesana, captando frontalmente as arquibancadas onde estavam o presidente Médici e as demais autoridades. Foi ali, pouco antes do início do desfile, que Médici solicitou algo óbvio, mas sequer cogitado pela equipe técnica: ver a transmissão em cores pela TV, razão de sua vinda a Caxias.
O episódio também foi detalhado pelo professor Sergio Reis na dissertação “O Backstage da Televisão no Rio Grande do Sul”: “Ali, no centro de Caxias do Sul, seria necessária uma antena receptora externa de alto ganho, algo impensável naquele momento, faltando menos de 30 minutos para o início da cobertura. Ocorreu, então, uma ideia salvadora: instalar, na frente do presidente, um monitor. Era necessário que se estendesse um cabo coaxial, do caminhão de externas ao monitor, no outro lado da rua, em frente ao presidente. Tratou-se de cavar uma canaleta, atravessando a avenida por onde passariam os carros alegóricos. Mas isso foi impedido pela segurança: ninguém poderia se aproximar do presidente portando uma picareta. A solução foi passar o cabo pelo alto. Os técnicos Sérgio Giugno e Jackson Sosa subiram ao ponto mais alto de postes de iluminação e levaram o cabo, cruzando a avenida por cima, até o monitor. O presidente e seus ministros pensavam estar vendo as imagens que estavam no ar, quando, na verdade, assistiam às imagens que saiam da unidade de externas, antes que fossem ao ar. Dias mais tarde, assistindo ao videotape da transmissão, que foi reprisada diversas vezes por várias televisões, constatou-se que, aquilo que fora assistido ao vivo, por todo o Brasil, era exatamente igual, em qualidade técnica, ao que se vira no palanque presidencial”.
A terceira? Ocorreu no dia seguinte, 20 de fevereiro, direto da Baixada Rubra, atual Estádio Centenário. Grêmio versus Associação Caxias de Futebol protagonizaram a pioneira transmissão a cores de um jogo de futebol no Brasil. Com apoio técnico da TV Caxias Canal 8, a TV Difusora gerou imagens coloridas para cidades como Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Vitória e Salvador. O resultado, porém, não esteve à altura de todo aquele ineditismo: foi um 0x0 de pouquíssimas emoções.
Estrelas na Sinimbu
Embora o diretor Walter Clark tenha inicialmente se posicionado “contra” a transmissão, a TV Globo e a então TV Gaúcha Canal 12 não ficaram de fora de toda a badalação daquele dia. Tanto que Clark e Maurício Sirotsky Sobrinho tiveram a ideia de trazer artistas do primeiro time da emissora para Caxias. Tônia Carrero, Francisco Cuoco, Jô Soares, Rolando Boldrin, Heron Domingues, Hilton Gomes e mais cerca de 10 atores de novelas passaram o dia pela cidade, confraternizando com o público, com o claro objetivo de marcar a presença da Globo no evento.
Sérgio Reis também destacou esse detalhe em sua dissertação de 2012: “Como a transmissão era aberta, via Embratel, sem qualquer custo para qualquer televisão que desejasse retransmiti-la, a participação no ar de figuras televisivas, de quaisquer canais, estava implícita. Não se tratava de um evento exclusivo de um canal de televisão.
O que aconteceria em Caxias do Sul era o lançamento, pelo governo federal, da televisão a cores no Brasil. A TV Rio e a TV Difusora eram as viabilizadoras do avanço tecnológico, não as donas da transmissão”.
Julio Cesar Pacheco, que na ocasião atuava como assistente da direção da RBS Porto Alegre, recorda dessa “sacada”. Foi ele quem acompanhou os artistas, de avião, da Capital até Caxias.
— Você pode imaginar o que representou para o público, naquele momento, a chegada, sem que tivessem sido anunciados, de Francisco Cuoco, Tônia Carrero e Jô Soares. Foi um sucesso a presença deles ali, foi o que realmente chamou a atenção — recorda Pacheco, que acompanhou o grupo pela Sinimbu junto ao gerente comercial da TV Caxias, Luiz Carlos de Lucena, e do gerente de projetos da RBS Porto Alegre, Sérgio Ivan Borges.
Foi solicitado também que a TV Gaúcha contribuísse com uma espécie de retaguarda. A emissora colocou um caminhão de externas em Caxias e outro no caminho, fazendo o link com Porto Alegre, no caso de uma emergência.
— Nota-se, nas fotografias da época, que existem câmeras, inclusive, junto ao caminhão da TV Gaúcha, prevendo algum imprevisto. O caminhão foi colocado exatamente ao lado do da TV Rio — recorda Pacheco, que substituiu o empresário Nestor Rizzo na direção da TV Caxias a partir de 1973.
Celofane colorido
Até meados dos anos 1970, televisores preto e branco e tiras de papel celofane colorido mantinham uma “estreita relação”. Grudá-las estrategicamente na tela era hábito em boa parte dos lares do Brasil. Havia até níveis pré-estabelecidos: mais em cima o plástico era azul, por causa do céu. No meio ficava o vermelho e, embaixo, o verde. Em 1972, poucas famílias de Caxias abdicaram desse truque – conforme estimativas da época, apenas entre 50 e 60 casas dispunham de aparelhos com a nova tecnologia.
Mesmo assim, foram as cores as mais enaltecidas durante a passagem dos carros alegóricos pela Rua Sinimbu, em 1972. Tons vibrantes, altos contrastes e muito brilho extasiaram o público, vide as alegorias apresentadas pelas metalúrgicas Madal, Gazola e Eberle. Concebido pelo mestre Isaac Menegotto – responsável pelo corso por 34 anos, de 1950 a 1984 –, o luxuoso carro da Metalúrgica Abramo Eberle foi uma das sensações de 1972. O artista valeu-se de uma enorme taça adornada com uvas. Junto a ela, a Miss Rio Grande do Sul, Maria Alice Correa Rezende. O veículo destacava ainda a escultura de uma coroa de louros, uma cascata de flores e, na base em jacarandá, uma colher de prata, simbolizando a produção da empresa (foto da capa do Almanaque).
Entre os carros das cidades vizinhas, um dos destaques foi o da fábrica de bebidas E. Kunz & Cia, do visionário industrialista Eloy Kunz, de Flores da Cunha – a Terra do Galo. A réplica de um galo português em madeira e uma garrafa gigante do whisky Cockland decoravam o veículo onde desfilaram as jovens Joaneta Baldissera Santos, Sandra Sandi e Suzana Rossetto Rodolfo.
Aos 16 anos em 1972, Suzana recorda do entusiasmo e da expectativa que tomaram conta de todos quando a notícia da transmissão em cores chegou.
— Tudo tinha de ser mais vivo e ainda mais colorido do que o normal, íamos aparecer na TV — conta a psicóloga de 66 anos.
Naquele dia, a estudante do Científico do Cristóvão de Mendoza, em Caxias, acordou muito cedo. Recorda que dormiu de rolos na cabeça, para o cabelo ficar todo cacheado. Preparou o vestido amarelo e o chapéu, e lembrou da recomendação:
— Seu Eloy dizia: “vocês já são lindas, então sejam vocês mesmas, sejam originais, sorriam, abanem.
No ponto auge do desfile, defronte à Catedral Diocesana, o carro parou em frente às câmeras, para a equipe filmar todos os detalhes. Foi à noite, porém, que “a ficha caiu”. Suzana e amigos foram à casa de um vizinho, dono de loja, um dos poucos a ter uma televisão colorida em casa. Sentado no chão, o grupo conferiu, maravilhado, o desfile de poucas horas antes.
— Alguns choravam, outros não acreditavam…
Mesmo sentimento tomou conta de dona Mirlene Dal Pos Rossi, 80 anos. À época, os Rossi aproveitaram uma promoção da marca Philco, que oferecia desconto de 50% para empresas que comprassem 20 aparelhos coloridos de uma só vez. Marido de Mirlene, seu Raul Victor Rossi (in memoriam) e outros 19 funcionários da Triches Comércio de Ferros não pensaram duas vezes na hora de fechar o negócio.
— Foi a chance que tivemos de comprar uma, era algo muito caro e raro na época — conta.
Naquele 19 de fevereiro de 1972, Mirlene ficou emocionada ao ver Caxias em cores na TV. Mas quando os carros começaram a se aproximar do bairro São Pelegrino, onde a família morava, ela não teve dúvidas:
— Achei tudo tão lindo pela TV que fui para a rua assistir.
Ao vivo e a cores.
Três datas importantes
- Embora o desfile da Festa da Uva em 19 de fevereiro de 1972 tenha marcado o início das transmissões a cores no Brasil, o 31 de março de 1972 é considerado o dia da inauguração oficial da TV em cores no país. Foi quando houve um pronunciamento do Ministro das Comunicações, o caxiense Hygino Corsetti, colocando no ar o sistema de transmissão em cadeia nacional.
- Na Globo, a novela O Bem-Amado foi a primeira produzida totalmente em cores. A trama de Dias Gomes estrelada por Paulo Gracindo e Lima Duarte foi exibida entre 22 de janeiro e 3 de outubro de 1973, no horário das 22h. A faixa das 20h ganhou cores em novembro de 1975, com a estreia de Pecado Capital, de Janete Clair. Já o horário das sete conheceu a novidade somente em 28 de fevereiro de 1977, quando foi ao ar o último capítulo de Estúpido Cupido, de Mário Prata.
- A transmissão da primeira reportagem a cores do Jornal Nacional ocorreu em 19 de julho de 1973, com a cobertura do funeral do senador Filinto Müller e uma entrevista com Dom Eugenio Sales, em que ele comentava a condenação de policiais acusados de tortura. Em depoimento de 2004, o apresentador Cid Moreira revelou que, nos primeiros tempos, as equipes do JN não sabiam direito que roupa usar. Segundo ele, o diretor José Bonifácio de Oliveira, o Boni, o fez trocar a gravata por causa da cor: “Achou a minha gravata muito sóbria. Pegou o carro, foi para casa e voltou com quatro gravatas importadas. Escolheu uma que tinha vermelho, amarelo, verde, uma orgia de cores”.