SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 1969 terminava o reinado da autora cubana de telenovelas Glória Magadan na TV Globo. Seus dramalhões bizarros marcaram uma primeira fase de assimilação da ficção televisiva no país --as tramas tinham como cenário locações remotas e exóticas povoadas por condes, ciganos, beduínos ou samurais e eram engessadas em um melodrama afetado e inverossímil, bem distante da realidade brasileira.
Com o sucesso da revolucionária "Beto Rockfeller" --novela de Bráulio Pedroso exibida pela TV Tupi um ano antes e que trazia pela primeira vez a história de um anti-herói "sem caráter" tipicamente brasileiro--, o diretor Daniel Filho decidiu pôr fim às fantasias descabidas de La Magadan e abraçar de vez a realidade urbana tupiniquim moldada na informalidade e no dia a dia dos personagens. A campanha de lançamento da novidade escrita pela recém-contratada Janete Clair confirmava os novos tempos: "Em 'Véu de Noiva' tudo acontece como na vida real. A novela verdade".
Meio século depois, "Amor de Mãe", que estreou na última segunda na faixa das 21h, parece inaugurar uma nova fase do gênero, no momento em que certos modelos de narrativas realistas são percebidos como ultrapassados e o modo de fruição das mídias tradicionais é confrontado pelo sob demanda. Também marca o início das atividades dos estúdios MG-4, um investimento milionário que posiciona estrategicamente a Globo no poderoso mercado de produção de conteúdo audiovisual atual.
Escrita por Manuela Dias, novata no horário e aposta ousada que corrobora o desejo de renovação, a trama tem a direção artística de José Luiz Villamarim, seu parceiro na aclamada série "Justiça" em 2016.
Centrada na vida de três mulheres às voltas com a maternidade e salpicada de coincidências e mistérios típicos das boas encruzilhadas folhetinescas, "Amor de Mãe" reúne um elenco estelar, encabeçado por Regina Casé, Adriana Esteves e Taís Araújo.
No burburinho da estreia, em entrevista à Folha, Villamarim prenunciou o que estava por vir: um hiper-realismo com doses de melodrama, mas sem apelações maniqueístas, nem vilões. De forma emblemática, filosofou: "o vilão é a vida". Uma semana depois, tal asserção se confirma.
O folhetim vem costurando suas histórias de forma engenhosa e, ao mesmo tempo, orgânica, se valendo de recursos formais arrojados usados no cinema e em seriados recentes, inclusive em "Justiça".
O flashback pulverizado na ação presente elimina a divisão por fases, o que resulta em agilidade extra que deve fisgar com menos embaraço o público.
A direção é sóbria: alguns planos são fixos, distantes e criam novos modos de atenção, permitindo que a imagem nos absorva e não seja interrompida por cortes. Uma entrada delicada e não-invasiva na intimidade dos personagens, um trabalho artesanal que prioriza o ator e que remonta à mise-en-scène do cinema realista britânico --Mike Leigh e Ken Loach dão um joinha aqui.
Os planos-sequência caprichados e o cruzamento aleatório e descompromissado de personagens de diferentes núcleos surpreenderam, amplificando a emoção. Em sequência antológica do primeiro capítulo, ao som de "O Estrangeiro", de Caetano Veloso, o personagem de Juliano Cazarré (Magno) caminha desnorteado em meio à convulsão de um engarrafamento noturno provocado por um acidente de moto. Faz lembrar o mexicano Alejandro González Iñárritu em "Amores Brutos" (2000).
Estaríamos livres do expediente já usado à exaustão da aproximação repentina em zoom como promessa de um falso envolvimento? Ou dos intermináveis planos e contraplanos? O desfoque da primeira tomada da novela com a gradual aproximação de Lurdes (Regina Casé) em uma entrevista para a futura patroa e mãe de primeira viagem Vitória (Taís Araújo) é exemplo dessa quebra de paradigma. Ou a aproximação subjetiva de uma viatura de polícia que desconstrói a tensão ao revelar que um dos PMs é afilhado de Lurdes.
A violência urbana crua e em excesso dos primeiros capítulos pode ter assustado o público mais conservador e saudoso da brejeirice colorida e alucinada de "A Dona do Pedaço". É um tema espinhoso, que já causou rebuliço em novelas passadas, como "Torre de Babel" (1998). Com todas as consequências que traz, a violência parece imersa na dialética da hora: pátria armada x mãe não tão gentil. A cena da aula interrompida por tiroteio em uma zona de confronto no Rio de Janeiro marca isso.
A trilha sonora atira para todos os lados (de Fábio Jr. a Bob Dylan), mas reúne canções que logo se tornam íntimas dos dramas dos personagens. Uma música pode transitar pelos sentimentos de vários deles simultaneamente, numa espécie de videoclipe que faz recordar filmes como "Magnólia" (1999), de Paul Thomas Anderson.
A abertura resgata "É", do repertório de protesto de Gonzaguinha. A música foi gravada em 1988 para a novela "Vale Tudo", marco do realismo social na teledramaturgia moderna da Nova República.
"Amor de Mãe" recebe, 31 anos depois, o bastão da trama progressista de Gilberto Braga que, segundo a lenda, influenciou no resultado das eleições municipais daquele ano, quando a esquerda venceria em dez capitais, com Luiza Erundina (PT) em São Paulo e Marcelo Alencar (PDT) no Rio.
Quando composta, "É" clamava por cidadania, respeito e direitos num país recém-saído da ditadura e que desenhava uma nova Constituição. Hoje, com os avanços e retrocessos, entranhados num enredo que traz a filha negra da empregada virando professora, uma dona de restaurante de bairro enfrentando uma grande construtora e empresário corrupto se safando da justiça, a canção sai do limbo, primeiro como déjà vu, depois como nova súplica.
Por enquanto, assistimos a personagens despidos dos maniqueísmos vulgares de folhetins tradicionais com as mães dando um show de emoções à flor da pele. O vilão, como disse Villamarim, é a vida.
Frederico Pellachin é radialista, pesquisa teledramaturgia brasileira e escreve o blog Na Trilha das Novelas
Novela
"Amor de Mãe"
Quando: de seg. a sáb., às 21h
Onde: TV Globo
Avaliação: Ótimo