SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Nos últimos dois meses, chegam a seis os cancelamentos de produções culturais por estatais e pelo Ministério da Cidadania, o que levanta suspeitas de censura entre membros da classe artística e procuradores de Justiça.
Nesta semana, três eventos que já haviam sido programados pela Caixa Econômica Federal e pelo Banco do Brasil foram suspensos. Em comum, abordam assuntos que têm desagradado a simpatizantes de Jair Bolsonaro, incluindo temáticas LGBT e críticas ao período militar.
A unidade da Caixa Cultural no Rio de Janeiro cancelou o patrocínio a dois projetos que já tinham sido aprovados em edital. Um deles foi a mostra da cineasta Dorothy Arzner, que discutiria temas feministas e homossexualidade.
Às vésperas da abertura, no último sábado (28), um ciclo de palestras sobre democracia, história, ciência e ambiente também foi suspenso.
Produtores do evento Aventuras do Pensamento receberam na quinta (26) um email de cancelamento. A justificativa foi a de que os organizadores mudaram títulos de palestras sem aviso prévio antes de assinarem o contrato. Procurada, a assessoria da Caixa diz que as razões para a decisão foram unicamente técnicas.
A série de conferências, voltada a estudantes de dez a 15 anos, chegaria à sua terceira edição e seria aberta pelo professor de filosofia e presidente do Cebrap, Marcos Nobre, numa aula sobre democracia.
Entre os títulos que foram modificados está o da palestra da pesquisadora Tatiana Roque --alterado de "História da Matemática" para "Por que Acreditar na Ciência?".
Os organizadores dizem que a postura crítica dos palestrantes a agendas de Bolsonaro teria sido a real razão para o veto ao projeto. Roque, por exemplo, é filiada ao PSOL.
A programação, na qual a Caixa investiria R$ 90 mil, incluía ainda falas da escritora Conceição Evaristo, do cientista Mario Novello, do ensaísta José Miguel Wisnik e do líder indígena Ailton Krenak.
Os curadores evitam falar em censura, mas dizem estranhar a decisão da instituição e desconfiar da versão oficial.
Eles relatam ter ouvido informalmente que projetos financiados pelo banco público estão passando por crivo da Secom, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, antes que sejam liberados.
"Iniciamos a produção do ciclo e assinaríamos o contrato duas semanas atrás. A Caixa começou a pedir documentos, prontamente encaminhados", diz Hermano Callou, um dos idealizadores do projeto.
"De fato, houve mudança de títulos das palestras, mas isso é normal e nunca foi considerado impeditivo [para realização]. Eles sempre estiveram cientes dos nomes dos palestrantes e de seus currículos."
Segundo Callou, que é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os organizadores se dispuseram a resgatar os títulos anteriores, mas a Caixa não concordou.
No email em que informou a desistência de apoiar a iniciativa, a instituição argumentou que o edital dá a ela o direito de anular o patrocínio caso haja alteração do projeto ou impossibilidade técnica.
Para Marcos Nobre, o caso desperta preocupação. "Um ato dessa natureza é grave porque não está isolado, faz parte de um contexto de graves indícios da restrição à liberdade de pensamento no Brasil."
"Acho que pode ter havido restrição política da Caixa, mas não que seja uma restrição partidária ou ideológica à esquerda", diz Tatiana Roque. "É mais um veto ao papel do intelectual e do cientista, que está sendo visto como ameaça aos poderes instituídos."
Em nota, a Caixa informa que o projeto original "foi alterado pelo proponente, demandando nova etapa de análise pela patrocinadora". "Nos termos da sistemática de seleção de projetos vigentes, aplicável a todos os concorrentes, não havia tempo hábil para nova avaliação prévia para subsidiar a contratação."
Ainda segundo o banco, o projeto poderá ser reapresentado em outra ocasião.
Para Marcella Jacques, curadora do painel que celebraria a diretora lésbica Dorothy Arzner, o cancelamento da mostra se soma à campanha contra "temas que têm sido combatidos pelo governo atual".
"A gente acredita que é um ato de censura pelo tema", afirma a produtora, que preparava o evento para novembro.
Ela foi notificada sobre o recuo em um email. "Questionamos a diretora de marketing, e ela negou que fosse por causa do conteúdo do evento. Alegou que seriam problemas de estrutura, porque o prédio está em reforma", diz.
Depois de várias cobranças, a Caixa respondeu aos organizadores do evento que "revê sua pauta cultural a todo momento" e que "a garantia da execução de um projeto só se estabelece a partir da assinatura do contrato entre a instituição e a proponente".
Afirmou que a decisão, no caso da mostra, se deu por "restrições logísticas e operacionais". O patrocínio previsto era de R$ 120 mil. Sem a liberação do valor, a Ventura Produções, da qual Jacques é sócia, terá de arcar com os custos até o cancelamento.
A assessoria de imprensa da instituição não se pronunciou sobre o cancelamento. Informou que não teve tempo hábil para levantar as informações --o pedido foi enviado na tarde de segunda (30) e ficou sem resposta até o início da noite de terça (1º).
Em nota à reportagem, a Secom diz que "não veta ou controla conteúdos de apresentações culturais". Segundo a pasta, uma instrução normativa estabelece que "propostas de patrocínio com valores iguais ou superiores a R$ 20 mil são enviadas para consulta da Secom para conformidade processual e documental".
Ainda de acordo com a secretaria, "o critério de avaliação do conteúdo é de inteira responsabilidade do órgão proponente", no caso, a Caixa.
No Rio de Janeiro, nesta semana, também houve o cancelamento de sessões de "Caranguejo Overdrive", peça já programada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, segundo os produtores.
As sessões aconteceriam nos próximos dias 9 e 10, em uma programação comemorativa dos 30 anos do CCBB, e chegaram a ser divulgadas na internet. Segundo produtores do espetáculo, o cancelamento não foi justificado.
Eles afirmam ainda que o texto do espetáculo, que já tem uma carreira de cinco anos de apresentações em diversos estados, foi sendo modificado de acordo com o contexto político e passou a abordar questões relacionadas à Amazônia e às milícias.
Procurado, o CCBB informou que está em contato com a produção do evento comemorativo para verificar a necessidade de ajuste na programação da qual a peça faz parte.
Em setembro, uma peça que tem entre as personagens uma travesti também enfrentou problemas na Caixa de Brasília. A Cia. Dos à Deux deixou de apresentar "Gritos" depois que a instituição pediu detalhamentos sobre a peça.
Na configuração aprovada originalmente, a companhia encenaria duas produções. A Caixa, contudo, só cobrou informações extras sobre a história que trata de gênero e que contém cenas de nudez.
A reportagem pediu à Caixa uma lista de todos os projetos de seu edital cultural mais recente que tiveram o patrocínio anulado e as justificativas. Indagou ainda se é comum haver cancelamentos de atividades aprovadas em seleções públicas da instituição. Ainda não houve resposta.
PROCURADORIA
O cancelamento do espetáculo "Abrazo", da companhia Clowns de Shakespeare, pela Caixa Cultural do Recife, e o veto a projetos audiovisuais --financiados com verba pública-- por meio de uma portaria assinada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, geraram reação nas procuradorias do Rio e de Pernambuco.
No mês passado, o Ministério Público Federal no Rio instaurou procedimento para apurar as razões da suspensão do edital que seria financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual, destinado a projetos para TVs públicas e que tinha categorias de investimento em séries LGBT.
Um dos questionamentos da Procuradoria é o de que o processo de seleção já estava em sua fase final. Também é apurado o destino de verbas que já haviam sido empregadas neste programa.
O MPF encaminhou ofícios ao Ministério da Cidadania e à Ancine, requisitando informações sobre a suspensão e sobre suposta decisão governamental de não aprovar projetos com temáticas LGBT.
A portaria de Terra foi expedida dias depois de Jair Bolsonaro criticar, em vídeo nas redes sociais, a inclusão de uma categoria com esse foco.
Segundo a assessoria de imprensa do Ministério da Cidadania, "o edital suspenso não havia sido discutido por este governo". Por abarcar recursos públicos de R$ 70 milhões, diz a nota, "o governo resolveu suspender com a intenção de analisar os critérios de sua formulação". O edital previa essa possibilidade de suspensão ou anulação, ainda segundo o resposta da pasta.
Sobre "Abrazo", o MPF em Pernambuco expediu recomendação para a Caixa retomar o espetáculo infantojuvenil, o que não foi cumprido.
Procurada, a Caixa informou que foi notificada em relação à recomendação e que responderia à entidade dentro do prazo legal.
O QUE FOI SUSPENSO OU CANCELADO
Abrazo
O espetáculo infanto-juvenil da companhia Clowns de Shakespeare foi cancelado após estrear, em setembro. A Caixa Cultural, a procuradores de Pernambuco, diz que a rescisão do contrato foi causada porque os proponentes não zelaram pela boa imagem dos patrocinadores.
Aventuras do Pensamento
Ciclo de palestras sobre temas como democracia, história, ciência e ambiente. Foi programada pela Caixa Econômica, Insittuição diz que interrupção foi causada por mudanças no projeto.
Mostra de Dorothy Arzner
A programação dedicada à cineasta americana destacaria temas como lesbianismo e feminismo. A Caixa Econômica não justificou seu cancelamento.
"Caranguejo Overdrive"
O espetáculo havia sido programado pelo Centro Cultural Banco do Brasil e seria apresentado neste mês. Produtores dizem que não houve justificativa para o cancelamento.
Edital de chamamento para TVs públicas
Em portaria, o ministro da Cidadania Osmar Terra suspendeu o programa que continha entre as categorias uma dedicada a diversidade sexual, para "analisar os critérios de sua formulação".
"Gritos"
O espetáculo da Cia. Dos à Deux seria apresentada na Caixa Cultural de Brasília, mas foi cancelada após a instituição pedir detalhamentos sobre a peça, que tem um travesti entre seus personagens