NOVA YORK – Suzanne Farrell, a sublime bailarina e criadora de muitas protagonistas para o coreógrafo George Balanchine, esteve recentemente de volta ao estúdio onde ele fez muitas de suas obras-primas para o Balé da Cidade de Nova York. Nessa tarde, ela estava treinando Sara Mearns e Russell Janzen para a montagem de "Diamonds", de Balanchine.
"Estamos quebrando a estrutura molecular do ar aqui. Conseguimos atingir um bom resultado", disse Farrell, enquanto o casal fazia sua entrada lenta, um em direção ao outro.
Esse era o último dia de ensaio; Farrell já tinha conquistado a confiança dos dançarinos. À medida que o comprido e lento pas de deux progredia, ela chamava a atenção de Mearns para a face interna do cotovelo dela que se elevava repetidamente: "Estamos desenvolvendo um padrão aqui – não acontece em nenhuma outra companhia de balé." Depois de passar uma hora com esse casal, Farrell iniciou os trabalhos com Maria Kowroski e Tyler Angle para os mesmos papéis.
Tudo se deu como em qualquer empreitada do universo da dança, mas a ocasião estava envolta em importância. Farrell, de 73 anos, foi referência no Balé da Cidade por décadas antes de se aposentar dos palcos em 1989. Esses ensaios foram o primeiro trabalho dela com a companhia em 26 anos.
O retorno coroa uma nova fase da história do Balé da Cidade. Os primeiros 35 anos da companhia (1948-1983) foram moldados por Balanchine; os 35 seguintes, por seu sucessor, Peter Martins.
Gradualmente, a partir da metade da década de 80, Martins tirou da equipe de ensaio a maior parte dos profissionais com mais experiência em Balanchine do que ele; mesmo quando poderia ter se beneficiado do conhecimento dessas pessoas na montagem de balés raros, raramente convidava os ex-alunos para trabalhar com a companhia. No entanto, desde a demissão de Martins no ano passado, o grupo tem convidado algumas dessas estrelas de outrora – Mikhail Baryshnikov, Patricia McBride, Mimi Paul, Edward Villella – para ensaiar papéis que ou foram criados por eles ou interpretados por eles à exaustão.
O que torna Farrell tão importante? O lugar que ocupa na história de Balanchine é central: ela o inspirou a realizar alguns de seus trabalhos mais radicalmente modernistas; deu vazão a uma eclosão de romantismo nele; mostrou como papéis antigos poderiam ser transformados. Ela mesclava grandiosidade, musicalidade, sagacidade, fervor e perspicácia em níveis fenomenais.
"Diamonds", um dos trabalhos autorais que Balanchine criou para Farrell, mostrou a escala heroica da bailarina; apesar de o papel trazer qualidades da Rússia Imperial, ela geralmente parecia dançar com uma liberdade sem igual no espaço infinito. Concebida para a "Sinfonia nº 3", de Tchaikovsky, é normalmente apresentada como o balé de encerramento da trilogia "Jewels".
Jonathan Stafford, recém-nomeado diretor artístico do Balé da Cidade, entrou em contato com Farrell pela primeira vez no segundo semestre de 2018, quando ainda era líder interino do grupo, para pedir que ela liderasse os ensaios de "Diamonds" antes da remontagem de "Jewels".
O momento não era o mais apropriado, mas, com a proximidade da remontagem de "Diamonds" pela companhia, Stafford tentou novamente. "Maria e Sara têm feito o papel principal há anos, mas as duas queriam tanto trabalhar com Suzanne, se fosse possível de alguma maneira."
Após Farrell ter se aposentado da dança, ela continuou a trabalhar no Balé da Cidade como mestra de balé até 1993, quando seu contrato foi bruscamente interrompido. Como Farrell e Martins tinham tido uma reconhecida parceria como dançarinos, o fato causou um escândalo. A revista "The New Yorker" noticiou em 1993 que Martins estava passando poucos trabalhos a Farrell. Logo após o artigo ser publicado, ela perdeu o emprego.
Apesar de exilada da companhia de Balanchine, Farrell nunca deixou Balanchine. Ela criou um grupo, o Balé Suzanne Farrell (de 2000 a 2017), em Washington; montou balés de Balanchine de Moscou a Londres; e deu aulas. Sua reputação como fonte de sabedoria do universo Balanchine nunca esmoreceu. Enquanto os papéis a que ela deu origem ganhavam status de apogeu do repertório de balé, a reputação de suas ideias como professora e instrutora não parava de crescer. Como disse em uma entrevista concedida em 2017, "Balanchine é a minha vida, meu destino".
Durante o período em que Martins esteve à frente do Balé da Cidade, muitos críticos de dança e ex-alunos de Balanchine observaram que muito do que era característico da dança da companhia tinha mudado consideravelmente, assim como detalhes das versões de Martins para a coreografia de Balanchine. Rumores sobre Farrell ser convidada a voltar começaram imediatamente após a saída de Martins.
Um fato que acelerou o retorno foi uma carta enviada por Kowroski, primeira bailarina da companhia, no segundo semestre do ano passado. Hoje com 40 anos, ela dança os papéis de Balanchine-Farrell desde os anos 1990 – muitos deles por mais tempo que a própria Farrell. Escreveu para dizer a Farrell quanto significaria para ela, agora quase no fim da carreira, receber sua orientação para "Diamonds" e outros papéis históricos.
Ninguém ficou indiferente à relevância de tê-la de volta a um estúdio do Balé da Cidade. "Estou aprendendo tanto", confidenciou o diretor musical da companhia, Andrew Litton, a Farrell na frente dos bailarinos antes de discutir questões sobre cadência e frases musicais. Alguns dias depois, por e-mail, Farrell afirmou: "Foi maravilhoso viver no 'mundo' de 'Diamonds' por alguns dias" no estúdio onde "ela foi concebida pela primeira vez".
Ela não demonstrava nervosismo; parecia a pessoa mais calma da sala. "Estou aqui por vocês", enfatizava aos dançarinos. Ela corrigia detalhes de padrões de solo: "Diamonds" deveria manter-se constante em matéria de diagonais e bordas. Ela também lhes chamou a atenção para aspectos da música e as possibilidades que estes davam aos bailarinos na maneira como podiam destacá-los. Ademais, corrigiu passos e configurações específicas.
Apesar de se assumir uma pessoa tímida que precisou aprender na vida adulta a usar a linguagem falada, seu discurso se mostrou, tanto nessa ocasião como nas demais, eloquente e fácil, movendo-se entre inteligência, poesia, análise e metáfora. Ela observou para Mearns: "O Sr. B. dizia: 'Pequenas coisas podem ser bonitas também. O perfume dos lírios do vale pode ser bonito também.'" Para Janzen ela gritou: "Não faça parecer que você está tentando pegar o cisne! Não a siga – deixe-a ir. Não é 'O Lago dos Cisnes'." "Estava estranho?" Kowroski perguntou sobre sua própria performance de uma passagem no fim da coreografia. Farrell fez uma pausa antes de responder gentilmente: "Faltou entrega."
Quando o ensaio acabou, ela se virou para mim, sem perder o ritmo, e comentou: "Assistimos ao 'The Cher Show' ontem à noite. Foi maravilhoso – você já foi ver?"
A inteligência e a imaginação que [Farrell] demonstra ajudam a liberar e entender melhor as minhas.
SARA MEARNS
dançarina
Ainda no estúdio, Mearns e Kowroski descreveram suas reações acerca dos ensaios com Farrell nos dias anteriores. Para Mearns foi "irreal"; Kowroski falou que ela tinha saído como de "um sonho". "Suzanne é a personificação de como eu acredito que Balanchine gostaria de ver suas coreografias dançadas", escreveu Mearns em um e-mail poucos dias depois, acrescentando: "A inteligência e a imaginação que ela demonstra ajudam a liberar e entender melhor as minhas."
Kowroski, também por e-mail, contou que, para ela, nessa fase da carreira, trabalhar com Farrell foi como um "renascimento". "Uma coisa é conhecer alguém a distância, o conjunto do trabalho e da carreira, vivenciando tudo aquilo como uma peça de museu. Outra é estar em uma sala em contato direto com essa pessoa. Não que eu já não tivesse tido contato com muitas, muitas, pessoas diretamente relacionadas a Balanchine antes – mas de repente agora eu tenho essa nova coletânea de tesouros", escreveu.
Farrell, concluiu Mearns, "realmente pensou sobre o que estávamos fazendo – é como se estivesse enraizado nela. Faz parte do DNA dela. Fomos ensinados a ouvir a música de apenas uma maneira – mas ela escuta outras coisas e nos dá a liberdade de nos abrirmos para o que escutamos".
Por Alastair Macaulay