Os mais jovens podem não se lembrar, mas Porto Alegre já comemorou muito Carnaval em suas ruas. O que há cerca de cinco anos é tendência na cidade mesmo entre quem não é fã de samba era tradição nos anos 1930 e 1940, em eventos que reuniam negros recém-libertos, imigrantes pobres e moradores dos bairros periféricos da cidade. Trazido como um misto de algazarra social e procissão religiosa pelos portugueses na virada do século 19, sob o nome de entrudo, o carnaval gaúcho já passou por salões, sambódromos e coretos – e hoje volta às praças e avenidas, em um movimento que encontra eco em tendências contemporâneas, como ocupação de espaços públicos, manifestações ao ar livre, socialização em torno da arte e bandeiras como diversidade sexual, igualdade racial e empoderamento por meio de movimentação cultural.
– Nosso objetivo é ocupar as ruas com arte, alegria e uma dose de indignação. Quando começamos, o Carnaval de rua estava retomando sua grandiosidade, e fizemos parte do movimento, que também foi nacional As pessoas sentem desejo de retomar a rua, que é sua por direito – diz Thiago Lazeri, um dos fundadores do Bloco da Laje, grupo criado em 2011 que promoveu sua saída em 21 de janeiro, fora da programação oficial.
Ainda que a programação de 2019 reserve apenas dois dias para a festa na Cidade Baixa – no ano passado, foram oito –, a prefeitura encontrou uma forma de tentar respeitar o legado da região: os blocos que demonstrarem ligação histórica com o bairro terão preferência para se apresentar nas ruas da Cidade Baixa.
– Levar o Carnaval para o Porto Seco é uma violência. O berço do Carnaval de Porto Alegre é a Cidade Baixa: a Praça Garibaldi, a Rua da República e o Areal da Baronesa, atual Baronesa do Gravataí – avalia Cláudio Brito, jornalista especializado em Carnaval.
A programação oficial deve ser divulgada na segunda-feira, mas entre os 26 blocos selecionados pelo edital, há instituições com ligação umbilical com a região, como Rua do Perdão e Maria do Bairro.
– Quando criamos o Maria do Bairro, o Carnaval de rua não existia mais – lembra Zeca Brito, cineasta que criou o bloco em 2007, algo que é considerado um marco na retomada das festividades ao ar livre da Capital: – Era um momento de absoluto tédio, em que o carnaval-espetáculo dominava o Brasil.
Foi sob os batuques do Maria do Bairro, realizados na mesma Cidade Baixa, e inspirados na iniciativa de Zeca que surgiram blocos mais recentes, como o Turucutá e a própria Laje. A retomada, com inspiração em blocos do início do século passado e com espírito semelhante a iniciativas pontuais das décadas de 1970 e 1980, é tida como marco por historiadores.
– Porto Alegre comemora seu Carnaval na rua até a década de 1970. Depois disso, se define que deveria haver um desfile oficial em um local determinado, e isso acaba com a tradição dos blocos humorísticos. Os blocos ressurgem para ocupar esse espaço – avalia a historiadora Helena Cattani, que estuda o Carnaval de Porto Alegre.
Diferentemente das décadas anteriores, no entanto, o novo momento do carnaval de Rua tem controle quase total da prefeitura. Algo que, se organiza a festa, também tira parte da espontaneidade do evento, ponderam especialistas.
– A festa popular sempre foi alvo de repressão. Atualmente, a burocracia e o controle são as dificuldades impostas – avalia Iris Germano, historiadora que pesquisa a identidade negra gaúcha por meio do Carnaval.